Um brasileiro que fala um alemão macarrônico chega a Frankfurt sem saber nem mesmo onde vai morar... Aqui narro minhas aventuras nesta temporada germânica: lugares interessantes, enrascadas em que me meto, esquisitices que percebo a cada dia. O nome do blog é uma analogia aos irmãos Grimm, alemães que compilaram muitas dezenas de contos de fada tradicionais, como Branca de Neve, João e Maria, Rapunzel, a Gata Borralheira, o Músico Maravilhoso, Chapeuzinho Vermelho, e a Bela Adormecida (mais detalhes em Vorstellung).

Centenas de fotos disponíveis em Ilustrações.


sábado, 4 de setembro de 2010

Kapitel CXII – O Boi Adormecido

A noite de ontem foi divertida. Fui ao bairro de Sachsenhausen, do outro lado do rio Main, para assistir em um bar com Florian ao jogo de futebol entre as seleções da Alemanha e da Bélgica. Depois da partida, nós nos encontramos ali perto com Vítor, Julian, Filipe e Fiorina e fomos a outro bar, numa área conhecida como a “antiga” Sachsenhausen, ou Alt Sachsenhausen.

Lá, bebemos “cerveja de litro”, que, diferentemente de como ocorre no Brasil, era medida horizontalmente e não verticalmente: vinha um suporte de madeira com vários copinhos de uns 200 ml. Parecia muito, mas em cinco ou dez minutos estavam todos os copos vazios. Uma segunda rodada foi necessária. Rimos muito, falamos muita bobagem, e voltei tarde para a casa, no ônibus noturno, já que o metrô tinha parado de funcionar uma hora mais cedo.

Quanto à partida da Alemanha, a seleção germânica venceu bem, por 1 a 0, fora de casa. Superou a Bélgica, que, se não é um timaço, tampouco é uma Ilha Farö ou Liechtenstein da vida, configurando-se em uma das seleções competitivas do grupo. A partida não era um amistoso, como eu supunha, mas o primeiro jogo das eliminatórias para a Eurocopa de 2012. O gol foi marcado por Klose, após uma roubada de bola de Schweinsteiger, aproveitando um cochilo da defesa belga. Na mesma rodada, a França, por exemplo, passou vexame, perdendo em casa para Belarus.

Este jogo da Alemanha me motivou a escrever aqui um conto fantástico que há tempos eu pretendia, mas sobre o qual, com a minha viagem para a França e, depois, a eliminação da Alemanha no mundial e o fim da Copa do Mundo, acabei perdendo o gancho. Trata-se da seleção “multicultural” da Alemanha. Durante a Copa, era impressionante o volume das reportagens e comentários exaltando o fato de haver no time jogadores de diferentes origens e nacionalidades. Até pelo horror que os alemães sentem do passado nazista, há um sentimento muito positivo pelo fato de haver negros e turcos na seleção. Historicamente, a Alemanha costumava ser um time branco, diferentemente do que já ocorria há mais tempo em outras eleções europeias, como Inglaterra, Holanda, Portugal e França.

De fato, a seleção da Alemanha que jogou uma boa Copa e que, em minha opinião, merecia ser a campeã (e teria sido, se não tivesse caído tanto de rendimento no jogo contrea os espanhóis), tinha gente de todas as partes. Miroslav Klose e Lukas Podolski, contestados e vitoriosos jogadores com um longo histórico na seleção, vêm, como se sabe, da Polônia. Os poloneses não gostam muito e os consideram traidores (isso me disseram os polacos no albergue em que fiquei em meus primeiros dias de Frankfurt; sobre eles, ver Kapitel II), mas eles de fato cresceram na Alemanha. Klose se mudou para o país aos sete anos e Podolski, aos dois.

Há outros estrangeiros nessa situação entre os participantes da Copa do Mundo. Andreas Beck mudou-se com sua família aos três anos de idade da União Soviética para a Alemanha. Marko Marin fez o mesmo, aos dois anos, vindo da Bósnia Herzegovina. Piotr Trochowski, nascido na Polônia, foi para a Alemanha aos cinco anos de idade. Há ainda jogadores com sobrenomes e aparência bem diferentes do alemão típico, mas que nasceram no país. Dennis Aogo é alemão de Karlsruhe, mas filho de pai nigeriano. O berlinense Jerome Boateng é filho de pai ganês. O ídolo Mesut Özil e Serdar Taşçı são ambos filhos de imigrantes turcos mas que nasceram na Alemanha. Sami Khedira é alemão filho de pai tunisiano, e Mario Gómez, de pai espanhol.

Considero muito positivo isso. Acredito que, em umas duas décadas, não só a Alemanha mas a maior parte da Europa serão como o Brasil, um lugar de muita mistura, em que não será possível identificar um rosto típico. Loiros, negros, pessoas de olhos puxados, árabes, indianos, todos os rostos poderão ser de cidadãos locais, nascidos e criados ali. Entretanto, acho que uma coisa é um jogador nascer na Alemanha filho de pais estrangeiros, ou mesmo se mudar ainda criança e crescer no país, e outra bem diferente é, depois de adulto, ele se naturalizar e jogar pela seleção alemã. E o clima no país é o de apresentar Cacau como se estivesse na mesma situação de Özil, Podolski ou Marin.

Cacau, ou Claudemir Jerônimo Barreto, é paulista de Mogi das Cruzes. Trilhou o mais improvável caminho em sua bem-subcedida carreira futebolística. Foram várias tentativas frustradas de decolar no futebol no Brasil. Diante dos insucessos, trabalhou como assistente de pedreiro e vendeu refrigerantes e salgadinhos. Em 2000, começou a jogar em um time da quinta divisão alemã, chamado Türk Gücü München. Depois, foi contratado para jogar no time B do FC Nürnberg. Agradou e passou para o time principal, jogando na Bundesliga. Transferiu-se, então, em 2003, para um clube mais importante, o Stuttgart, pelo qual jogou a Copa dos Campeões da Europa no mesmo ano e, depois, novamente na temporada de 2007-2008. Tem contrato com o Stuttgart até 2013.

Sem jamais ter sido chamado para a seleção brasileira, obteve o passaporte alemão em 2009, após oito anos vivendo no país, e foi convocado para a equipe nacional, onde é ídolo incontestável. Apesar de não ser titular, é incrível como é unânime a vibração da torcida quando ele entra em campo. Isso não me contaram; eu vi em cada jogo na Copa do Mundo. O atacante substitui algum titular e as pessoas sorriem, comentam, festejam, torcem.

Florian, certa vez, perguntou: “Cacau é meio-brasileiro, não é?” Eu respondi: “Não, Kurányi é meio-brasileiro. Cacau é completamente brasileiro!” Kevin Kurányi, atacante que não esteve na última Copa, nasceu no Rio de Janeiro, filho de pai húngaro criado na Alemanha e de mãe panamenha. Jogou dos seis aos 13 anos de idade no Serrano, de Petrópolis, com um período de um ano no clube panamenho Las Promesas, para onde voltou em 1996. Apenas em 1997, aos quinze anos, ele se mudou para a Alemanha, para jogar nos juvenis da equipe B do Stuttgart.

Minha brincadeira foi, justamente, uma crítica a essa ideia de que a situação é a mesma. Cacau é um batalhador, merece ter sucesso na carreira, mas me agrada este fenômeno, comum em todo o mundo, de os times naturalizarem estrangeiros para compensarem deficiências de sua equipe. Já cansei de ver braisleiros, que no máximo moram há muito tempo fora, defenderem seleções como a do Japão, de Portugal, da Tunísia, da Espanha, da Bélgica... O mesmo ocorre com africanos, surinameses, argentinos... Acho que nascer ou crescer em um país é motivo forte o suficiente para jogar pela seleção desse país; mudar-se para lá já adulto, com outra cultura, e viver lá por uma década não é, por mais que goste de lá e tenha se ambientado bem.

Não é o primeiro caso na Alemanha. Outro brasileiro, Paulo Rink, jogou pela seleção há algum tempo, sem qualquer ligação prévia com o país. O ganês Asamoah, que jogou por vários anos na seleção alemã, foi para lá aos 12 anos. É mais legítimo do que a situação de Cacau e Paulo Rink, ainda que eu tenha alguma dúvida (sim, é uma dúvida, também não tenho certeza se mereceria ser criticado) se é o mesmo caso de estrangeiros que imigraram quando eram crianças bem mais jovens, entre dois e sete anos de idade.

Enfim, cada caso é um caso. Mas, em linhas gerais, o que quero dizer é que, se é fantástico – não apenas futebolisticamente, mas também (bem mais importante) socialmente e humanitariamente – que não haja restrições para a participação de alemães com as mais variadas origens étnicas e culturais na seleção nacional, por outro lado, convocar jogadores que não são alemães não tem nada a ver com isso. Trata-se de um mero artifício para tornar a equipe tecnicamente mais competitiva. Neste caso, a história da seleção multicultural deixa de ser uma bela transformação social e passa a ser mera conversa para boi dormir.

Um comentário:

  1. Realmente é notável a abertura da seleção alemã para jogadores de diversas etnias. Acho que no ideário das pessoas nesse país só tem lugar para loiros de olhos azuis, dado o histórico nazista. Aos poucos eles vão conseguir apagar essa imagem.

    E você não pode deixar de assistir um jogo sem seu modelito rubro-negro, não é?!rs.

    Bjs

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