Um brasileiro que fala um alemão macarrônico chega a Frankfurt sem saber nem mesmo onde vai morar... Aqui narro minhas aventuras nesta temporada germânica: lugares interessantes, enrascadas em que me meto, esquisitices que percebo a cada dia. O nome do blog é uma analogia aos irmãos Grimm, alemães que compilaram muitas dezenas de contos de fada tradicionais, como Branca de Neve, João e Maria, Rapunzel, a Gata Borralheira, o Músico Maravilhoso, Chapeuzinho Vermelho, e a Bela Adormecida (mais detalhes em Vorstellung).

Centenas de fotos disponíveis em Ilustrações.


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Kapitel CXIX – A Longa Noite Hamburguesa

Voltei ao Brasil há quatro meses, aproximadamente. Minha intenção era continuar narrando as derradeiras aventuras de minha temporada germânica, mas meus últimos dias no Velho Mundo foram muito corridos. A atualização dos Contos Fantásticos ficaria para o meu retorno, mas continuei sem tempo. Com apenas uma semana no Rio de Janeiro, já arrumei as malas para Caxambu, onde participei de um congresso. Dias após meu retorno, vivi a maior tristeza de minha vida: minha mãe faleceu. Foi difícil seguir em frente. A dor persiste forte, lá dentro.


Mas nunca desisti de completar os Contos Fantásticos do Irmão Gui, de escrever sobre cada um dos momentos que não pude romancear antes de meu voo de volta sobre o Atlântico. A falta de vontade, de ânimo, e por vezes até de tempo, foi atrasando o projeto. Corrigirei isso a partir de agora, na periodicidade que se apresentar conveniente. As lembranças não estão mais tão vivas, mas vasculharei as profundezas de minha memória (bem como as fotos do meu álbum e os mapas que eu trouxe...) para trazer todos os detalhes que conseguir. Só é muito triste que minha leitora preferida e número 1, de quem sinto tantas saudades, não está mais aqui para comentar os próximos Kapitel.


Hoje é a vez de tratar do meu último dia e meio em Hamburgo. Comecei aquele já distante 8 de outubro dando uma volta pelos lugares da cidade que ainda não havia conhecido. Andei um bocado – sem nenhuma segurança de estar no caminho certo, naturalmente – em torno dos bonitos lagos Binnenalster e Außenalster – que, na verdade, são formados artificialmente pelo represamento do rio Alster, tributário do Elba. Tomei uma cerveja escura Flensburger Dunkel – só conhecia a versão clara – e um sorvete (acho que de café, o meu preferido) de casquinha. A caminhada era muita e... sabem como é... dava sede. Fui obrigado a continuar a experimentação de cervejas: foi a vez, então, da escura de trigo König Ludwig. O bar, tipicamente alemão, era atulhado de quinquilharias, objetos antigos, copos e garrafas, postais, e artigos dos dois clubes de futebol da cidade: o HSV (que aqui no Brasil é chamado de Hamburgo mesmo) e o St. Pauli.

Segui caminhando até chegar a uma parte do bairro de Sankt Pauli que eu ainda não conhecia. Passei por belas construções, como a igreja ortodoxa russa Kirche des Heiligen Johannes von Kronstadt e a Alta Corte Regional Haneática, uma de frente para a outra. De lá, segui para conhecer o clube St. Pauli. Apesar de ser uma equipe pequena, que vive caindo para a segunda divisão, tem uma grande torcida espalhada por todo o país – é a quinta ou sexta maior –, não se limitando à cidade de Hamburgo.

Isso acontece porque sua camisa marrom não é o seu único diferencial. É tido como um time alternativo e de esquerda. Fundado em um bairro proletário que se tornou o maior centro de prostituição da Alemanha, foi o primeiro a proibir neonazistas na torcida e tem um presidente homossexual assumido. Assim, mesmo torcedores de outros times – tirando o rival HSV, é claro – acabam simpatizando com o St. Pauli e torcendo por ele quando não é contra sua própria equipe do coração. O caráter alternativo, no entanto, não aparece na hora de vender camisas: sua lojinha, supercheia, não vendia artigos mais em conta do que os dos outros clubes alemães. Ainda assim eu não resisti, e saí de lá com duas camisas marrons, uma desta temporada e outra retrô, comemorativa do centenário.

Segui para o bairro de Neustadt e passeei pelo belo parque Planten un Blomen, que no dialeto nortista local significa “plantas e flores”. De lá se podia avistar o imponente relógio de torre da igreja barroca de São Miguel (Hauptkirche St. Michaelis), um famoso ponto turístico da cidade. Continuei caminhando pelo centro de Hamburgo e ainda tive tempo de provar mais uma cervejinha – Ratsherrn – e ver o pôr-do-sol no porto antes de voltar para o albergue.

Naquela noite eu ia reencontrar Franco, um argentino radicado em Hamburgo que eu tinha conhecido em um congresso alemão sobre América Latina (ver Kapitel LXII) em Eschborn, cidadezinha próxima a Frankfurt. Se não fosse por não dar bola para futebol, Franco seria um perfeito estereótipo do argentino: cabeludo, dramático, dançarino (professor!) de tango. Fomos a Sternschanze, o bairro onde havia a maior concentração de mulheres bonitas que vi na Europa, e lá comemos um delicioso Schnitzel, o filé de porco empanado, com Käsespätzle, uma massa alemã (ver Kapitel VII). Era o prato mais parecido com bife à milanesa. Sim, Franco também gostava de milanesa... É quase o estereótipo do argentino, como eu disse.

De lá, fomos a um restaurante especializado em vinhos para nos encontrarmos com uma antiga amiga dele, também argentina, chamada Candelaria. Rimos muito, demais. Cande é uma figuraça, totalmente agitada, hiperativa. Bebemos um bocado, mas a noite não acabou lá. Fomos a uma boate que não cobrava entrada. Não era uma boa ideia, já estávamos arrasados. Mas não fomos embora sem arrematar com uma cuba libre.

Após sairmos de lá, fui dormir no albergue, certo? Errado! Era muito mais tarde do que eu imaginava que voltaria, e precisaria fazer o check-out do albergue relativamente cedo. Franco e Cande me sugeriram, então, sair naquela madrugada e ir para a casa dela, onde eu poderia acordar mais tarde. E assim fizemos. Eles ainda agüentaram um último vinho. Eu capotei no quarto.

No dia seguinte, fui com Cande dar meu último passeio pela cidade antes de voltar a Frankfurt. Já estava com passagem de trem comprada para umas seis ou sete da noite. Passamos pela Spitalerstraße, a rua comercial “cult-bacaninha” de que falei no Kapitel anterior, onde havia uma manifestação contra não sei o quê, cheia de gente deitada no chão. Depois, fomos aonde eu só havia estado à noite: a área portuária onde fica o Mercado de Peixe (Fischmarkt). Não havia, àquela hora, peixe algum, mas o lugar é bonito e foi bom vê-lo no claro.

Voltamos para a casa dela, eu peguei minha mochila e zarpei. Muito gentil, ela me deu todas as coordenadas para chegar ao metrô e, de lá, à estação ferroviária. Quem acompanha estes Contos Fantásticos sabe que isso não garante nada. Afinal, senso de direção não é, definitivamente, o meu forte. Havia, portanto, uma tensão no ar... Mas deu tudo certo, consegui pegar o trem e chegar tranqüilo – e bem tarde – a Frankfurt. Terminava, assim, minha última viagem de mais de um dia de duração antes de retornar ao Brasil.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Kapitel CXVIII – Tijolonautas

Não foi fácil, ainda em Frankfurt, encontrar um albergue que não fosse afastado, que tivesse um preço acessível e que tivesse vaga disponível. Acabei escolhendo um que mais parece um hotel, localizado no bairro boêmio de St. Pauli, antiga área proletária onde ficam os inferninhos da cidade, bem como sede do clube de futebol homônimo. É claro que, para estar pagando por um quarto individual com banheiro um preço equivalente ao de um quarto compartilhado em outros albergues, não se trata do melhor hotel do mundo.

O albergue em que me hospedei em Toulouse (sobre essa viagem, ver Kapitel LXXXII e os seguintes) ainda é o campeão absoluto de barulho da rua (e o pior é que lá fazia tanto calor que era preciso deixar a janela aberta), mas não se pode dizer que esta área é propriamente silenciosa. Ouço música das boates aqui de baixo até tarde. Aliás, também dá para ouvir vizinhos mais barulhentos durante o dia. Mas acredito que o custo-benefício vale muito mais a pena do que o dos concorrentes disponíveis. O quarto é esquisito, o banheiro tem uma ducha minúscula, mas ao menos parece limpo, a internet não está incluída mas não chega a ser cara, e o conforto de estar sozinho no quarto e de não dividir banheiro é muito bom.
Como cheguei cansado de Hannover na quarta-feira à noite, só saí na manhã de quinta-feira. Fui andando meio a esmo, e tentando me encontrar no mapa. Visitei a Michaelis- kirche, igreja que ostenta na entrada uma imponente imagem de Miguel Arcanjo atacando o demônio. Paguei para subir em sua torre (que já foi reconstruída algumas vezes por causa de acidentes naturais e dos bombardeios da Segunda Guerra) e para visitar a cripta. A cripta era meio sem graça mas, pelo menos, lá eu aprendi por que vejo tantas construções alemãs com tetos e picos verdes: é que são feitos de cobre, e, quando uma estrutura desse metal não é plana e está submetida a muitas intempéries, pode criar após dez a quinze anos uma pátina verde, resultado de um proxeço de oxidação. Estão vendo? Criptas e os Contos Fantásticos do Irmão Gui também são cultura.

Quanto à torre, subi pela escada, apesar de haver um elevador, para poder ver qualquer coisa interessante no meio do caminho. De fato, vi os sinos e vi o mecanismo que faz o relógio da torre funcionar. Chegando lá em cima, podem-se avistar todas as partes de Hamburgo. Depois ainda vi pelo menos outras duas igrejas onde também se pode pagar para subir na torre, mas não posso dizer se eram melhores ou piores, pois eu já estava cansado e não tinha vontade de subir para ver mais ou menos a mesma coisa.

O que mais chama a atenção em Hamburgo é a grande quantidade de água, já que é uma enorme cidade portuária e tem vários canais, e o incrível número de construções em tijolos. Jens me contou que estas são típicas do norte da Alemanha. Há, no entanto, bem mais do que em Hannover, que também tem essa característica. Em contraste com as casinhas de tijolos e as pontes de metal, há edifícios modernos e viadutos futuristas para a passagem de trens.


A exemplo da Kaiser-Wilhelm-Gedächtniskirche em Berlim (ver Kapitel XCVIII) e da Egidienkirsche em Hannover (ver Kapitel anterior), Hamburgo também tem sua igreja destruída pelos bombardeios aliados na Segunda guerra Mundial e mantida em escombros como monumento pela paz: o memorial St. Nikolai. Há várias esculturas espalhadas pelo local, e também estão expostos alguns blocos de pedras que não viraram pó quando a igreja foi bombardeada.

Achei muito bonito o prédio da prefeitura. Dentro dele, ao lado da exposição de caricaturas de políticos (eu só conhecia e reconheci o Helmut Kohl), parte de um livro que está sendo lançado, havia quadros mostrando a correlação de forças dos partidos no legislativo local. Fui a um estabelecimento que era loja de roupas e cafeteria ao mesmo tempo (?!); lá tomei um café hondurenho que achei meio fraco, mas comi uma deliciosa torta de nozes com maçã. Antes, em um bar com temática naval, provei duas cervejas: Fürstenberg e a ruiva Duckstein. Depois, em uma feirinha próxima à rua Spitaler, que é cheia de lojas de roupa e de gente “cult-bacaninha”, bebi outras duas que não conhecia: Dithmarscher clara e escura (Pilsener e Dunkel).

À noite, fui dar uma volta em St. Pauli. Para dizer a verdade, minha impressão não foi das melhores. E não é nenhum conservado- rismo ou puritanismo não, acho legal haver um bairro assim. Mas achei o clima meio estranho, muito diferente do divertido distrito da luz vermelha em Amsterdã (ver Kapitel CXVI). Na Holanda, era tudo muito claro e descontraído, mas nesta parte de Hamburgo vê-se em cada esquina gente querendo empurrar você para dentro com uns papos “171”...

Pelo menos uma cena deixou claro que a situação está sob controle: vi um travesti levando dois policiais para um hotel. Todos com um ar tenso, em claro indício de que o travesti fez uma queixa na delegacia (que, aliás, funciona em uma casinha de tijolos bem bonitinha), provavelmente de algum cliente caloteiro ou violento, e os policiais foram averiguar. Ou seja, a polícia não só estava trabalhando efetivamente como não tratou o travesti com desrespeito ou preconceito.

Hamburgo é uma cidade interessante. Não pertence a nenhum estado e é a segunda maior da Alemanha. Em um dia andando em Hamburgo, andei à beça e tirei 250 fotos! E ainda falta um dia e meio. Um dia e meio de muita água e muitos tijolos.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Kapitel CXVII – Telas e Trilhos

Falta pouco tempo para eu voltar para o Rio. Dizem que brasileiro deixa tudo para última hora. Não é que seja o meu caso, pois acho que fiz muita coisa ao longo destes seis meses, mas de fato estou mantendo um ritmo alucinante de atividades nesta reta final. Dois dias depois que voltei de viagem da Bélgica, fui comer um Spätzle e tomar uma cerveja com o Jens, em um bom restaurante no bairro de Bockenheim.

No dia seguinte, fomos ao bar Wirtschaft, também em Bockenheim, ver o jogo entre o Hannover 96, o time dele, e o St. Pauli, equipe alternativa e proletária da cidade de Hamburgo. Dois a zero para a equipe marrom do St. Pauli, que era visitante. Apesar de minhas simpatias por ela, eu preferiria outro resultado, já que se tratava do time do Jens. Em seguida, fui diretamente ao Balalaika, o bar musical do bairro de Sachsenhausen, para me encontrar com Gilberto e Letice. Coincidentemente, cruzei no meio do caminho com Lara e Xenia, assim que atravessei a ponte sobre o rio Main. Elas iam a uma festa. Nós nos despedimos mas a festa delas não estava lá essas coisas e, mais tarde, não é que elas também apareceram no Balalaika?!

Um dia depois, sábado, fui à casa do Gilberto e da Letice, onde assistimos a um filme brasileiro: “Árido Movie”. Ele comprou um projetor e um telão, e foi ótimo ver a imagem como no cinema. Foi bem legal também reencontrar Felipe e Fiorina, que também foram. E isso tudo regado a vinho.

No domingo, dia da votação, Gilberto foi ao consulado exercer seu dever cívico. Eu não pude votar porque não transferi meu título, já que queria poder dar meu apoio à Dilma caso houvesse segundo turno. Depois, no entanto, eu e ele fizemos uma rápida viagem. Fomos a Fulda, cidade a menos de uma hora de Frankfurt.

Antes, na estação de trem Hauptbahnhof, foi engraçado ver torcedores do pequeno Energie Cottbus. Logo reconheci que era o time do meu amigo Bertram. Aliás, ele comentou que vários times do leste da Alemanha têm nomes típicos da cortina de ferro, como Energie, Dinamo etc. Aqueles torcedores, que gritavam muito com suas camisas vermelhas, estavam lá porque sua equipe foi a Frankfurt enfrentar o segundo time local, o FSV Frankfurt, em partida válida pelo seguinda divisão alemã. E, assim como o time do Jens, a equipe do Bertram também perdeu: 3 a 2.

Fulda é uma cidade bonitinha, apesar de pouco badalada. E impressionante- mente organizada para o turismo: há numeração para explicações em áudio em frente aos prédios históricos no meio da rua, tal como é comum no interior de museus. Além de charmosas casas antigas, e igrejas imponentes, há um belo castelo com um não menos bonito jardim em frente a ele. Infelizmente, como fomos tarde, começou a escurecer. Como a cidade é pequena, no entanto, acho que deu para ver tudo. Ficamos apenas umas duas horas lá e voltamos.

À noite, foi a vez de aproveitar uma promoção do serviço de trens alemão, que acabava naquele dia: passagem para qualquer cidade dentro do território alemão por apenas 20 euros. Comprei pela internet uma passagem de ida para Hannover, para ir com o Jens, que é de lá, e uma de volta de Hamburgo, que fica ainda mais a norte e eu querida visitar em seguida.

Na segunda-feira, recebi em casa Lara, Xenia, Lucia e Nikolai para vermos outro filme brasileiro, que acho que eles nunca teriam a oportunidade de ver de outra forma: “Cinema, aspirinas e urubus”. Antes, mostrei um curta-metragem alemão que venceu o Oscar: “Spielzeugland”. Depois, ouvimos músicas brasileiras de todo tipo. Foi divertido.

Quarta-feira, parti de viagem com Jens para Hannover. Também não é uma cidade badalada pelos turistas, mas tem muitos lugares interessantes. No imponente prédio da prefeitura, surpreendentemente tranqüilo em relação à vigilância, há quatro maquetes mostrando a cidade em diferentes épocas: em 1689, às vésperas da Segunda Guerra (1939), após ser destruída pelos bombardeios aliados (1945), e hoje em dia. Bem impressionante, mas não tanto quanto a igreja de Santo Egídio, que, quase toda destruída, não foi recontruída; mantiveram o que restou, como monumento à paz (semelhante ao que fizeram com a Kaiser-Wilhelm-Gedächtniskirche, em Berlim; ver Kapitel XCVIII).

Vimos ainda um lago totalmente artificial, em frente ao qual está o estádio do Hannover 96. Visitamos a igreja protestante Markkirche, onde havia dentro uma exposição de arte moderna. Aliás, a cidade gosta de arte moderna, e três esculturas muito loucas – que são uma bandeira para as feministas – são um símbolo da cidade, quase tão importantes quanto o cavalo rampante e a dupla de leões que guarda a entrada de diferentes prédios públicos, como a prefeitura e a universidade. Almoçamos num bom restaurante grego, onde comi um ensopado de carneiro com um enorme feijão branco e vegetais. Para beber, uma cerveja escura tcheca levemente doce chamada Staropramen. Mais tarde, provei uma cerveja local, Gilde.


Achei bem bonita uma parte do centro da cidade cheia de prédios antigos. Jens contou que, nos anos 1920, era uma área caótica, com muita criminalidade, cheia de mosquitos, onde viviam as prostitutas e os marginais, por ser a área mais desvalorizada. Após o bombardeio da Segunda Guerra, toda a área foi devastada. Reconstruíram a região de uma forma totalmente diferente, com prédios em estilo antigo que só existiam em outras partes da cidade. Isso significa que o que existe hoje lá é artificial; mas levando-se em conta que é uma das áreas mais bonitas e que antes era uma das mais feias, acho que fizeram bem em não ser tão fiéis à arquitetura original.

Também lindo é o parque Herrenhäuser Gärten, dividido em vários subjardins, com chafarizes, flores e estátuas brancas, de frente para um palacete. É impossível visitá-lo e não pensar em Versalhes ou Fontainebleau (sobre eles, ver Kapitel XC). Pouco depois das sete, voltamos à estação de trem de Hannover, tomamos um sorvete e cada um foi para seu canto. Jens voltou para Frankfurt. Eu segui para Hamburgo, cidade que todo mundo elogia muito. É o ponto mais setentrional em que estive até hoje. Depois contarei como foi lá. E aí faltará apenas uma semana para voltar para a Cidade Maravilhosa.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Kapitel CXVI – Trilogia: O Retorno do Reis

Acabou o curso de verão. Passamos de bar em bar a longa noite depois do coquetel de encerramento em Bruxelas e começaram as despedidas. A italiana Luana foi a primeira a ir embora, na véspera. Ainda teríamos o começo de sábado para dar umas voltas. Logo depois do último almoço no restaurante da sopa de lentilha (ver Kapitel anterior), foi a vez de me despedir de Patrícia e João, cujo voo de volta para Portugal seria no meio da tarde. Não muito depois foi a vez de Sofie e, por fim, eu e Edalina nos separamos no metrô. Era minha vez de ir à estação norte para pegar o ônibus baratinho para Amsterdã.

Cheguei no começo da noite. Não havia feito reserva em albergue, mas tinha pegado o endereço de alguns. Entretanto, não tinha um mapa. Estava perdido e me recusei a pagar três euros por um minúsculo mapinha em uma das várias lojas turísticas no centro. Ridículo! Em qualquer cidade europeia se consegue um mapa daqueles gratuitamente e os holandeses ficam metendo a mão!

Andei muito, o mochilão e o laptop pesavam cada vez mais. Os únicos mapas que eu tinha eram os que copiei do Google e colei em um documento de Word com os endereços dos albergues. Para me localizar, portanto, eu precisava, a cada vez, ligar o computador e tentar encontrar em algum dos micromapas a rua onde eu estava. Acabei chegando a uma rua mais residencial, e um senhor de idade viu que eu estava bem perdido.

Pegou um guia de ruas e telefonou para o primeiro albergue da lista. Esdruxula- mente, o atendente falava mal holandês, e ele falava mal inglês. Ainda assim, pôde constatar que eu tinha capturado o mapa errado que aquele albergue ficava muito longe dali. Viu que o segundo albergue da minha lista, no entanto, era ali pertinho, e me acompanhou até lá. Foi muita gentileza.

Tive muita sorte: havia uma (apenas uma!) cama vazia para aquela noite! A sorte só não era maior porque ela ficava em um quarto com 18 camas! Pelo menos as pessoas não eram barulhentas. Talvez porque se tratava de um albergue cristão. Ou seja, tratava-se de um albergue não apenas silencioso como chato, sem qualquer clima; isso em plena louca Amsterdã. Reservei mais duas noites em um quarto com seis camas (que, aliás, nem chegaram a ficar todas ocupadas).

Os funcionários eram gentis e educados, tinham sempre a preocupação de ajudar e impedir que os hóspedes se perdessem ou tivessem problemas (parece até que já me conheciam, não é?). Mas o albergue em si era uma porcaria. A internet wireless não era gratuita, e era preciso pagar para ter acesso mesmo do próprio laptop. O café-da-manhã, incluído, era paupérrimo: quando havia panquecas, estava até bom, mas foi frustrande o dia em que pedi os sanduíches e vi que eles se restringiam a dois pãezinhos com uma única fatia de queijo cada, muito fina e que sequer cobria todo o interior do pão. E ainda tive que comprar um mapa: lá custava menos, um euro, mas eles não forneciam de graça como em outros labergues em que já estive.

No dia seguinte à minha chegada, andei por toda a cidade, tentando cobrir a maioria dos lugares desenhados no mapa. Amsterdã é uma cidade bonita, cheia de antigas casinhas localizadas em ruas inclinadas de pedras, cortadas por belos canais. Aliás, uma aparência que não condiz com seu clima amalucado. As pessoas lá parecem querer ser o mais loucas possível; mesmo o comportamento alternativo não me parecia natural, tive a impressão de ser um pouco forçado. É visível também que há uma enorme quantidade de estrangeiros, seja como turistas, seja como imigrantes, seja como indecisos quanto a qual das duas categorias se enquadrar.

Não demorou muito e, sem querer, eu me encontrei no meio do famoso distrito da luz vermelha. O mais louco é ver crianças pequenas e velhinhos olhando aquele monte de sex shops e de casas de sexo explícito. Alé bichinhos de pelúcia com peru de fora são vendidos aos montes, juntamente com camisetas engraçadas alusivas a sexo e drogas. Não deixa de ser estranho olhar para janelas de frente para a rua, que parecem vitrines de lojas, e constatar que as manequins se mexem e lá o produto à venda não é a roupa, mas sexo. E há de tudo: desde jovens moças até prostitutas bem velhas, desde mulheres tão lindas que não dá nem para acreditar que existem até outras que não dá para acreditar que alguém queira algo com elas (e muito menos que pague para isso!). Não faltam garotas vindas do leste europeu, mas há também orientais, negras etc.

Outra coisa que se encontra por toda parte são os não menos conhecidos coffe-shops. É o local onde é permitida a venda de maconha e haxixe. Quem não fuma, dependendo do lugar, tem a opção de comer um bolinho aditivado. Há desde uns buracos escuros e esfumaçados com música pesada até um charmoso café com cara de limpinho, em frente a uma igreja e com belas garçonetes. No distrito da luz vermelha fica um que se chama Buldog, que se intitula o mais antigo de todos, aberto em 1971, se minha memória não falha (não, não houve nenhuma piada implícita nesta frase).

Apesar de todo o clima de animação e balada, as cervejas não são o forte da Holanda, definitivamente. São muito piores do que as vizinhas belgas. A Amstel, talvez a mais comum, é bem ruinzinha. Vale mais a pena beber uma Jupiler, que conheci em Bruxelas e é fácil de se encontrar em Amsterdã, além de ser uma das opções mais baratas.

No meu segundo dia, choveu o tempo todo. Ainda bem que tirei bastantes fotos na véspera. Aproveitei para fazer algo que eu já pretendia e que dispensa um céu ensolarado: ir a museus (que, aliás, são todos caros). Fui ao Museu Van Gogh e à Rembrandthaus. A Casa de Anne Frank ficava perto do albergue, mas a fila para entrar era tão quilométrica que desisti dela. O Van Gogh tem uma grande coleção de pinturas não apenas dele como também de artistas que o influenciaram ou que foram influenciados por ele. Pude ver Monet, Toulouse-Lautrec, Gauguin e até Gustave Coubert, de quem gosto muito, mas as pinturas que me impressionaram mesmo foram as de Jozef Israëls e de Léon Lhermitte, que eu não conhecia.

A Casa de Rembrandt é, efetivamente, um casarão onde esse mestre das sombras vivia (até que, afundado em dívidas por seu estilo de vida luxuoso, precisou abrir mão dela, terminando seus dias com pouco espaço e pouco dinheiro). Nas paredes, pinturas feitas em seu atelier por ele e por seus aprendizes. Em uma das salas, podíamos ver uma demonstração do processo de litografia.

Como meu voo de Bruxelas para Frankfurt sairia na manhã de quarta-feira, eu precisaria voltar a Bruxelas na terça para passar a noite lá. Então, deixei para ir a um último museu no final da manhã e, em seguida, pegar minhas coisas no albergue e partir de volta para a Bélgica. O museu escolhido foi o meu preferido entre os três que visitei: o Rijksmuseum. Além de ser uma construção linda (que estava, no entanto, parcialmente oculta por uma reforma em seu exterior), tem um grande acervo de brilhantes pintores holandeses, como Rembrandt, Vermeer, Jan Steen e Bosch, além de armas, prataria e porcelana. Adorei a atualíssima pintura “Fishing for Souls”, de Van de Venne, em que católicos e protestantes pescam fiéis no rio.

Peguei minha mochila e parti para a estação Amstel, onde, suposta- mente, pegaria o ônibus baratinho para Bruxelas às três e meia. Suposta- mente, havia o ônibus das três e meia e, se tudo desse errado, ainda havia um às seis e meia, segundo vi na internet. Tudo apenas “supostamente”. Chegando lá, às 3h10, tive a desagradável notícia de que, naquele dia, o último ônibus tinha saído às 2h30. No dia seguinte, sim, haveria esses horários.

Era preciso inventar um plano B. Voltei à estação central e comprei o bilhete de trem. Era bem mais caro, 41 euros, mas ainda um preço viável; no sentido contrário, de Bruxelas para Amsterdã, o preço era surreal: 87 euros! Ainda assim, como não aceitaram meu cartão de crédito, fiquei praticamente seu dinheiro vivo até a volta para a Alemanha. Cheguei à Bélgica com o dia ainda claro. Não havia reservado albergue mas tinha pegado uma lista de três opções com Willy, o sino-californiano que dividira quarto comigo durante o curso de verão. Não haveria de ser difícil encontrar um. Pelo menos, isso era o que eu achava. O avanço das horas e o escurecimento do céu me fariam mudar completamente de opinião.

Fui até a primeira opção, a pé, com todo o peso da mochila e do computador sobre os ombros. Era um albergue bem central, tudo de que eu precisava. Foi muito frustrante ouvir que todos os lugares estavam ocupados. O cara disse que, se eu quisesse, poderia esperar lá para ver se haveria alguma desistência. É claro que não fiquei. Queria achar o quanto antes um albergue para deixar as minhas coisas, e seria bom se fizesse isso ainda de dia. Seria...

Andei muito até chegar a outro albergue da lista. Dos três que eu tinha o endereço, apenas aquele primeiro era bem central. Apesar de afastado e localizado em uma rua meio escura, parecia um lugar legal. Mas isso não faria diferença. Também estava lotado! Exausto e já muito preocupado, perguntei à atendente (que tinha aquele jeitinho charmoso e acelerado de francesinha cool) se ela sabia de algum lugar não muito caro onde eu poderia passar a noite. Gentilíssima, a menina começou a telefonar para outros albergues e, ao encontrar um, fez a reserva para mim e me deu o endereço de lá e um mapa, explicando o caminho mais fácil para chegar lá.

Era, portanto, apenas questão de tempo. Graças às boas indicações, achei o lugar sem maior dificuldade. Havia no meu quarto um figuraça estaduni-dense, com bigode à la Hercule Poirot, chamado Patrick, descendente de escoceses e nascido no dia de São Patrício, que falava pelos cotovelos (e eu só entendia metade do que dizia). O albergue parecia bom e tinha um bom café da manhã. Este começava a ser servido às sete e eu já estava, antes dessa hora, a postos. Tomei o café rápido e saí bem cedo, para não ter problemas. E não teria nenhum se não fosse por alguns percalços...

Se tem algo que não compreendi bem como funciona são os trens em Bruxelas. Perguntei para o controlador se o trem que ia sair era o que iria para o aeroporto e, sem paciência e desatento, ele me deu uma resposta que deu a entender que era. Mas não era. Os controladores não fazem nenhuma questão de orientar os passageiros perdidos. Quando achei estranho e perguntei para outros passageiros, eles me disseram que era no outro sentido.

Saltei naquela cidadezinha-satélite e perguntei para o vendedor da estação ferroviária local como eu poderia ir para a Estação Norte, de onde eu sabia que sairia o trem para o distante aeroporto. Ele me deu a indicação, mas acabei novamente saltando errado. Quando cheguei a Estação Norte, não tive problemas para seguir para o aeroporto. Mas já era praticamente a hora do meu voo.

Quando cheguei ao balcão da Lufthansa, perguntei ao funcionário se ainda era possível ir no voo, porque eu estava atrasado. É claro que não era. Ele me orientou a ir ao balcão de remarcação de viagens. Minha surpresa foi a tranqüilidade do balconista da Lufthansa para remarcar minha viagem para o voo seguinte, menos de duas horas depois, sem cobrar nada por isso. Fiquei totalmente fã da Lufthansa! Isso é que é saber tratar bem os clientes!

As confusões continuariam até o último momento. Chegando ao prédio onde moro, tive a desagradável surpresa de que não havia ninguém em casa. E como fiz um acerto com Mario, que aluga o quarto para mim, para ele alugá-lo nessas duas semanas em que estive fora, eu estava sem a chave. Telefonei para ele e soube que Manfred viria, mas ainda demoraria uns quarenta minutos. Demorou mais. Fiquei uns vinte do lado de fora, na rua, até que enfim algum vizinho chegou. Entrei “de carona” e me sentei na escada.

Peguei meu laptop, consegui captar fraquinho o sinal da internet da minha casa, e lá fiquei esperando, sob olhares desconfiados de vizinhos que entravam ou saíam. Enfim, o final foi feliz e toda a aventura valeu a pena. Não há trilogia sem momentos difíceis e contratempos, não é mesmo?

domingo, 3 de outubro de 2010

Kapitel CXV – Trilogia: As Duas Bruxelas

Enfim, cheguei a Bruxelas. O aeroporto é estranho, parece um labirinto. É preciso andar muito lá dentro, subir escadas, descer escadas, dar voltas e mais voltas em caracol... tudo bem pouco racional. Fui seguindo outros passageiros, é claro, para achar o lugar de pegar a bagagem. Só que, quando percebi, eu já estava na área de saída do aeroporto. Precisei pedir ajuda para o pessoal da segurança para entrar novamente e pegar minha bagagem.

Bruxelas é uma cidade bem maior do que eu esperava. Capital da União Europeia e sede da OTAN, tem grande quantidade de estrangeiros. Por esse motivo e pela combinação de casas antigas com prédios modernos, era inevitável que eu a comparasse com Frankfurt, e a visse como uma versão belga da cidade onde estou morando. Só que não apenas achei as distâncias maiores em Bruxelas como a sua população é uns 30% mais numerosa do que a de Frankfurt.

Logo me chamaram a atenção os prédios antigos, com amplo predomínio das cores bege e cinza, as impressio- nantes seqüencias de casas conjugadas (sem nenhum espaço entre elas), também a presença de muitas casinhas de tijolos, e as amplas áreas das praças e prédios públicos, em contraste com a aglomeração das velhas casas “amontoadas”. Não faltam estátuas, principalmente de homens montados em cavalos, como chamou a atenção minha mãe. O pior da cidade é a antipatia da maioria dos garçons e dos funcionários dos transportes públicos. Um aspecto extremamente charmoso são as cenas de quadrinhos pintadas em grandes dimensões nas paredes de vários prédios; adorei, e fotografei várias.

Há algo, no entanto, bem mais pitoresco na cidade, e na Bélgica como um todo. É um país que não é bem um país. É dividido em duas regiões, uma em que se fala holandês – Flandres – e outra em que se fala francês – Valônia. Não é incomum que flamengos não saibam falar francês e que valões desconheçam o holandês. Enquanto os flamengos aprendem francês no colégio mas depois pouco o usam, inclusive podendo se ofender se você se dirigir a eles na língua francesa (é melhor usar com eles o inglês), os valões podem não ter nem mesmo o menor conhecimento da língua holandesa, pois têm a opção de estudar na escola holandês ou inglês, como preferirem.

O país tem as duas regiões e, no seu centro, fica a capital, Bruxelas. Trata-se de uma área bilíngüe, localizada próxima ao limite entre as duas regiões mas dentro de Flandres. Originalmente uma cidade flamenga, acabou, por sua importância, recebendo tantos valões que, hoje, a língua predominante, que se ouve sempre nas ruas, é o francês.

Só que no país tudo tem que ser dividido em cada uma das culturas lingüísticas. Todas as ruas de Bruxelas têm um nome em cada idioma, os partidos políticos são sempre dois de cada ideologia (há um socialista flamengo e um socialista valão, um liberal de Flandres e um liberal da Valônia, etc.) e até a universidade é, na verdade, duas. Meu curso de verão sobre partidos políticos durou uma semana, acontecendo primeiro no campus valão (Université Libre de Bruxelles) e, nos últimos cinco dias, no flamengo (Vrije Universiteit Brussel).

Acabei chegando tarde ao hotel que estava reservado para os estudantes do curso de verão. Tomei um banho e fui à universidade. Não tinha levado o mapa e custei muito a achar o local, que era o instituto de investigações europeias. Cheguei uma hora depois ao coquetel de inauguração (que, a propósito, foi bem mixuruca). Fui o último não desistente a chegar: os demais participantes ou chegaram muito mais cedo ou não foram nesse dia. Aquele primeiro momento foi meio frio. Eu tentava fazer piada, puxar assunto, mas todos estavam meio tímidos e retraídos. Mas era apenas o “gelo” inicial. A turma tinha muita gente legal e nos divertiríamos bastante.


Eu era o único latino-americano do curso, cujo corpo discente se destacava pelo fato incomum de, entre quinze alunos, três serem portugueses. Eles, aliás, se tornaram meus melhores amigos lá, junto com a italiana Luana, sulista de sangue quente nascida em Puglia. João, sempre muito engraçado, nasceu em Évora e é filho de pais alentejanos. Estuda na Universidade de Aveiro com Patrícia, que vem dessa cidade mesmo. Edalina nasceu na Espanha, filha de pais cabo-verdianos, mas foi novinha para a Terrinha e também é “tuga”.

A turma tinha ainda três estadunidenses: uma judia de Ohio chamada Sarah, que sempre falava alto, rápido e com muita gesticulação; um chinês de Taiwan que se mudou criança para a Califórnia e adquiriu nacionalidade ianque (chama-se Willy e foi meu companheiro de quarto); e uma estudante de relações internacionais radicada na Alemanha. Alás, havia também uma alemã da Baviera, uma coreana que mora no Texas, um romeno meio doido, o francês Matthieu (que não fala português mas tem pai lusitano; eu e João começamos a chamá-lo de Mateus) e três belgas.

Entre os belgas não havia nenhum valão. Maïté, que pouco fala holandês e é francófona (e fuma como uma francesa), reclamou quando eu disse que ele era da Valônia. Observou que era de Bruxelas, e que, apesar de falarem francês, bruxelenses e valões são completamente diferentes. Ah, bom. A propósito, ela é também, provavelmente, o único caso do mundo de alguém que foi à Polônia com a motivação de aprender a falar inglês (?!).

Os demais belgas da turma eram flamengos. Um era Tom, que era gente-boa mas deu uma declaração tão equivocada como infeliz: disse que o único time de futebol brasileiro que conhecia era o Boca Juniors. Lamentável e imperdoável! A outra belga, que foi a que ficou mais próxima dos luso-ítalo-brasileiros, especialmente no final, era Sofie. Alta, loira, magra, bonita, simpática, elegante, delicada e sorridente, ganhou o apelido de “princesa da Disney”. Cinderelamente, aliás, deixou o sapato cair enquanto andava conosco em uma rua de Bruxelas, mas eu bobeei e não peguei a tempo.

Eu, João, Patrícia, Edalina e Luana saímos vários dias juntos, depois da aula da tarde, passeando pela cidade, conhecendo os lugares turísticos, jantando e bebendo cerveja. Às vezes alguma outra pessoa ia conosco, às vezes algum deles ficava no hotel para descansar ou preparar alguma coisa relacionada os estudos. Eu fui o único que saí todos os dias, sem exceção, inclusive na véspera da minha apresentação. Foram saídas leves, voltando cedo, mas me recusei a passar algum dia trancafiado no hotel. Além disso, sempre quando eu voltava, ainda tinha pique para ir para a internet. Como as aulas começavam às nove da manhã e as universidades (sim, os dois campus) não ficavam perto do hotel, passei duas semanas dormindo seis horas ou menos todos os dias.

A Bélgica é a grande rival da Alemanha na disputa pelo posto de país com as melhores cervejas do mundo. Tive seis meses na Alemanha para provar várias cervejas. Como só estive duas semanas na Bélgica, precisava ser rápido para ter base para comparação. E provei várias cervejas: Westmalle Trappist, Leffe Brüne, Leffe Blonde, Chimay Blue, Duvel, Waterloo, Judas, Vedett, Grimbergen Dubbel, Jupiler, Orval, Trappistes Rochefort e até a não-alcoólica Tourtel (essa por acidente, porque o Tom me disse equivocadamente que era uma stout).

Provei ainda cervejas lambic (de trigo, com fermentação espontânea), faro (versão mais adocicada da lambic), gueuze Mort Subite Framboise (lambic misturada com framboesa; não é ruim, mas prefiro cerveja normal) e St Lamvinus Cantillon (lambic misturada com uva, lembra um vinho beeeem doce, argh!). Como não anotei, no entanto, não tenho certeza se realmente bebi todas essas e provavelmente estou me esquecendo de alguma.

Cheguei à conclusão de que certamente prefiro as alemãs. Se fizermos uma comparação com os vinhos (não sei se é uma boa comparação, mas acho que possibilita expressar minha avaliação), as cervejas alemãs são como vinhos secos e as da Bélgica como vinhos suaves. As cervejas belgas têm em geral um gosto mais frutado e, apesar de terem alto teor alcoólico, não são encorpadas como as germânicas. Minha cerveja preferida entre as que eu provei lá foi justamente a que mais me lembrou as boas alemãs: a ótima Chimay Blue. Ah, e valeu a pena prová-las, só para conhecer, mas não achei nada saborosas as lambic e as faro; prefiro inclusive o “suquinho de framboesa” gueuze a elas.

Nem só de bebida vive a Bélgica, é claro. Os belgas são especialistas em batatas fritas, o que não como, mas também têm enorme tradição nos waffles (ou gauffres, em francês). Comemos as duas versões com chocolate (de que também são exímios produtores): o de Liège, que é mais durinho, e o de Bruxelas, mais mole. Não sei qual é melhor, mas são ambos muito tradicionais no país.

Um dia, fomos a um restaurante português assistir ao clássico lisboeta entre Benfica e Sporting, o Fla-Flu da capital lusa. E para a alegria de Edalina, que estava tensa, e para leve decepção de Patrícia (bem leve mesmo, aliás, pois não estava lá muito preocupada), deu vitória “encarnada”: fácil, fácil, dois a zero para o Benfica. Comemos bifanas, uns sanduíches de carne de porco, e, lá, nossas cervejas eram lusas: Sagres e Superbock.

O restaurante aonde fomos mais vezes, no entanto, foi um que tinha uma ótima sopa de lentilhas. Foi sugestão de Luana, que ficou viciada no lugar. Tomei a sopa em dois dias, e em outros dois comi um gostoso crepe com diferentes queijos. Aliás, Luana merece um comentário adicional em relação à culinária: disse que adora comida inglesa e que está cansada de ver restaurante italiano por todos os lados. Como assim? Está cansada de comer massa e acha a culinária inglesa boa?! Bizarro. Ela mesma já contou que dizem que é uma italiana fake: também não gosta de café, nem de futebol. Mas após duas semanas deu para ver que não é completamente “falsificada”: fala com as mãos, tem sangue quente e não admite que a massa não esteja al dente.

Houve um dia que fomos todos convidados pela organização do curso para ir a um restaurante típico belga. Lá, comi um filet americaine tartar (foi a segunda vez que comi esse prato; a primeira, em Paris, está descrita no Kapitel XC). De sobremesa, mandei ver em uma dame blanche, um sorvete de creme com calda quente de chocolate; o gosto lembrava o do profiterole e é uma sobremesa popular no país.

Também houve dia em que fomos a um restaurante italiano, a um tailandês, e em que comemos pizza. O mais inusitado certamente foi a vez em que comi canguru. Nunca imaginei que provaria tal carne na Bélgica. É boa, mas lembra muito a bovina, não sendo, portanto, muito diferente do trivial. E a carne de canguru estava macia, diferentemente do que, no passado, eu tinha ouvido falar sobre ela.

O bandejão dos dois campus também não era ruim – aliás, era bem melhor do que o Mensa da Universidade de Frankfurt. O que era complicado era encarar as enormes filas. É claro que houve dias sofríveis, como uma péssima sopa ou falta de acompanhamentos razoáveis, mas no geral havia boas opções. Inclusive pratos típicos belgas, como os boulettes à la liégeoise e o vol-au-vent.

Mas não pensem que nossos passeios se resumiam à comilança. Desbravamos a cidade por vários dias, especialmente no domingo, quando a maioria das ruas estava fechada para os carros. Fomos algumas vezes à bela Grand Place, inclusive presenciando o lindo espetáculo de luzes no prédio da prefeitura. Também fomos ao Atomium, visitamos o Parlamento Europeu, e passamos a mão em uma imagem de Jesus que dizem que dá sorte.


Cruzamos outras tantas oportuni- dades com o conhecido Maneken Pis. É a famosa fonte em forma de um menino fazendo xixi. Quando visitas ilustres vêm de outros países, costuma-se vesti-lo com trajes que homenageiem o visitante. É uma cópia dele o Manequinho, que, localizado no Rio de Janeiro, tornou-se um símbolo do Botafogo. Todas as pessoas ficam decepcionadas com o Maneken Pis, por ser muito menor do que se imagina. De fato, é pequenino, parecendo ainda menor pelo contraste com a grande estrutura atrás dele.

Mas é um ponto inevitável de visitação, justificando a estampa de uma camiseta que eu vi, com o desenho dele e a inscrição “eu sou pequeno mas sou o dono do pedaço”. Há na cidade também a versão feminina e a versão canina do Maneken Pis: a menina, Jeanneke Pis, está agachada urinando, e o cão tem até a perninha levantada. Só que, se o Maneken Pis tem sua importância pelo fato de ser a primeira fonte da cidade, instalada no século XVII, a menina e o cachorro não têm nem de longe o mesmo destaque, até porque têm poucas décadas de existência.

Um dia, fomos ao museu histórico, que abriu à noite, gratuitamente. Mas funcionava de um modo diferente: estava com as luzes apagadas e lanternas eram distribuídas para as pessoas. A ideia era divertida, apesar de, obviamente, não motivar muito a ler textos mais extensos. Havia algumas coisas bem interessantes, como cartazes políticos. O que mais gostei foi a antiga charge “Pyramide a Renverser”. Com o desenho de uma pirâmide em que o rei estava no topo, localizando-se abaixo dele, nesta ordem, clérigos, militares, burgueses e, em sua base, os populares, a charge tinha as seguintes inscrições ao lado dos respectivos personagens: “A Realeza – Eu reino sobre vocês; O Clericalismo – Eu oro para vocês; O Militarismo – Eu atiro em vocês; O Capitalismo – Eu como para vocês; O Povo – Eu trabalho para vocês.” Simplesmente brilhante.

No sábado, viajei com Patrícia, Edalina, Luana, João e a coreana para Gent e Brugges. A ideia original era ir a Brugges, mas quando Patrícia consultou Tom, ele disse que a cidade era uma farsa. Ela perguntou se não era interessante ir lá e ele respondeu: “se você gosta de Disneylândia”. Obviamente era um exagero, mas de fato a dica de ir antes a Gent foi ótima. É uma cidade tão medieval quanto Brugges, só que mais bonita e menos turística. Basicamente é a mesma coisa sem aquele monte de propaganda em cima.

Só me irritou o fato de que cobravam para ver a Catedral. Eu já tinha ido a igrejas que deixavam ver de graça, já vi cobrarem só para conhecer as catacumbas ou alguma sala com relíguias. Já tinha visto até a parte cobrada ser um terço da igreja, o que já me parecia um excesso. Mas o que presenciamos em Gent foi ridículo: simplesmente um pedaço minúsculo depois da porta estava com acesso liberado, e uma cortina preta cobria a visão da igreja inteira, incluindo o altar. Como se não bastasse, uma leva de turistas saía irritada de lá reclamandado que não havia nada para ver e que tinham jogado quatro euros fora. Obviamente não vimos a igreja, portanto. Mas a cidade é bonita, e valeu a pena pagarmos para subir em uma torre, que tem vista panorâmica.

Minha estadia na Bélgica foi proveitosa. Não apenas porque participei de um bom curso, mas porque me diverti um bocado e fiz ótimos amigos: Patrícia, sempre boazinha e perita em imitar sotaque brasileiro do interior; Luana, a italiana algo reclamona e gente-finíssima; João, o camarada com quem dei muitas gargalhadas; e Edalina, que sempre brincava que eu e ele éramos “os piores” por causa da bagunça que aprontamos na cidade (vários garçons pediram, com educação ou com grosseria, para falarmos baixo); sem falar na princesa belga Sofie. Amigos que não esquecerei. Os “piores”, sem dúvida. Como dissemos: “os piores serão os melhores”.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Kapitel CXIV – Trilogia: A Fraternidade da Alemanha

Já estou sendo cobrado pelo meu sumiço, pela minha recende falta de produtividade nestes Contos Fantásticos. É que tive duas semanas agitadas, com pouco tempo livre. Mas contarei o que me aconteceu nos neste Kapitel e nos dois seguintes, que formarão uma “trilogia”. Estava se aproximando minha viagem para Bruxelas, onde eu participaria de um curso de verão sobre partidos políticos. Mas antes eu ainda tinha alguns compromissos na Alemanha.


Primeiro, fui ao Jazzkeller, onde seriam comemorados o aniversário de Celi (a paulista da viagem para Freiburg; ver o Kapitel anterior) e a despedida de Alécio (outro brasileiro do grupo da festa da casa do Filipe; sobre esta, ver Kapitel LVII), que voltaria para o Brasil. Estava lá a maioria dos brasileiros que conheci na Alemanha: Vítor, Filipe, Gilberto, Letice, Fiorina, Celi, Ulisses, Alécio. O som era um jazzinho muito bom, que lembrava a ótima trilha sonora dos Peanuts composta por Vince Guaraldi. Dei um tempo nas cervejas e lá bebi o vinho Côtes du Rhône. Foi também a minha despedida europeia do meu camarada Vítor, que voltou ao Brasil enquanto eu estava na Bélgica.

No dia seguinte, foi a vez de me encontrar com Berenice, que não via já fazia um tempão. Fomos a um restaurante no bairro de Sachsenhausen, chamado Frollein. A ideia era bebermos Apfelwein, o tradicional vinho de maçã frankfurtiano, mas fomos surpreendidos pela informação de que eles não tinham. Fui obrigado a voltar à cerveja (fazer o quê, né?). Bebi uma cerveja escura chamada Hövels, e comi Käsekreiner, que é uma salsicha recheada com queijo.

Antes de me encontrar com Berê no restaurante, no entanto, consegui a proeza de ter dificuldades de encontrá-lo. Atravessei a ponte no rio Main, adentrei Sachsenhausen, e estive do outro lado da rua em frente ao restaurante mas não o reconheci; virei, então, à direita, e dei a maior volta, até retornar pelo outro lado da rua e, após muito caminhar, deparar-me com o Frollein e me dar conta de que eu tinha me enrolado à toa.

Um dia depois, foi a vez de ir pela última vez a Mainz (ou Mogúncia), encontrar-me com Tobi e Marion Mannhold. Cheguei mais cedo, enquanto eles ainda estavam no trabalho, para visitar o Museu Gutenberg. Como disse no Kapitel XLIII, Gutenberg está para Mogúncia como Goethe está para Frankfurt. Como grande personagem histórico nascido na cidade, tudo lá leva o seu nome.

O Museu Gutenberg mostra antigas máquinas de impressão, conta sobre a vida do criador da imprensa móvel, exibe vários impressos europeus e chineses e, claro, a famosa Bíblia de Gutenberg. O frustrante é que o museu fechou mais cedo do que o divulgado no site, por estar em período de férias, de modo que fui, basicamente, expulso de lá antes de terminar de ver as últimas salas.

Precisei, também, fazer uma horinha antes de encontrar meus amigos. Quando Marion e Tobias apareceram, fomos a uma tradicional casa de vinho da cidade. Lá, bebemos Feder Weisser, um tipo de vinho branco mais suave, que é o vinho ainda “jovem”, no começo do processo de fermentação. Como Mogúncia é uma cidade produtora de vinho, eles vendem apenas nos meses de setembro e outubro, em função da época da colheita das uvas, essa bebida. Achei saborosa, apesar de bem diferente do vinho em seu estágio final.

As leveduras ficam concentradas no fundo do copo, e eles me alertaram para não ingeri-las, pois elas continuariam trabalhando dentro do meu estômago, podendo dar um... digamos... revertério. Eu parecia um perito em beber Feder Weisser: deixei menos de um milímetro de líquido acima da levedura. Marion era claramente a mais medrosa; temendo ingerir o pozinho do fundo, deixou quase um quarto do líquido. Tobi, que talvez tenha bebido com um pouco da levedura junto, ainda arrematou o restinho do líquido da taça da Marion. Marion comentou que as conseqüências eles veriam à noite. Espero que não tenha havido nenhuma...

Tobi tentou pedir para nós o tradicional acompanha- mento para o Feder Weisser: uma torta de cebola chamada Zwiebel- kuchen. Ele brincou que tal iguaria, junto com o Feder Weisser, dá um efeito bombástico, com as leveduras continuando a trabalhar dentro da barriga ainda mais ativamente, mas ainda assim todo mundo consome os dois juntos. Infelizmente (ou não) o produto estava no cardápio mas o bar não tinha.

Depois, fomos comer em um restaurante que funciona em um antigo prédio onde originalmente era um hospital. Bem interessante o lugar. Só que no cardápio todos os pratos vinham com batata (sobre essa leguminosa nos restaurantes germânicos, ver Kapitel XVII). Acabei comendo um pão no forno coberto com molho e queijos, que parecia uma pizza; estava bom e era o único jeito de fugir das batatas, essa obsessão gastronômica dos alemães. Voltei a beber a cerveja Hövels, a mesma de quando fui ao restaurante com a Berê em Frankfurt, e depois encerramos a noite com o licor Jägermeister, o mesmo que tínhamos bebido na vez anterior que os visitei em Mainz (ver Kapitel LXII). Foi curiosa a cara de espanto da garçonete quando Tobi pediu a bebida. Depois, ele comentou isso com outro garçom, perguntando se é incomum consumirem o licor, e este fez graça, respondendo que é porque ela queria que fosse ela a beber no nosso lugar.

Foi muito bom reencontrar esse casal de amigos. Como são muito ocupados e vivem em outra cidade, não sei se voltarei a vê-los nesta temporada europeia, que já está acabando. Espero que sim. De todo modo, sempre muito gentis, eles me deram lembranças de Mainz: um calendário com fotos da cidade, e um copinho desenhado com uma cena de Mogúncia para beber Jägermeister ou outra bebida.

Ainda faltavam poucos dias para viajar para Bruxelas, mas o fato de eu não sair mais de casa até lá não significava que eu estaria de bobeira. Foi uma grande correria, porque eu precisava terminar o artigo para um congresso de ciências sociais no Brasil antes de partir. Seria um inferno precisar escrevê-lo no meio do curso de verão, e o prazo final para enviá-lo era bem no meio do período em que eu estaria na Bélgica.

Para vocês terem uma ideia de como foi corrido, acabei exatamente no mesmo dia do meu voo. Saí correndo, com medo de me atrasar, e dormi pouquíssimo naquela noite. Aliás, isso bem poderia ser um presságio do que me ocorreria nas duas semanas seguintes.