Um brasileiro que fala um alemão macarrônico chega a Frankfurt sem saber nem mesmo onde vai morar... Aqui narro minhas aventuras nesta temporada germânica: lugares interessantes, enrascadas em que me meto, esquisitices que percebo a cada dia. O nome do blog é uma analogia aos irmãos Grimm, alemães que compilaram muitas dezenas de contos de fada tradicionais, como Branca de Neve, João e Maria, Rapunzel, a Gata Borralheira, o Músico Maravilhoso, Chapeuzinho Vermelho, e a Bela Adormecida (mais detalhes em Vorstellung).

Centenas de fotos disponíveis em Ilustrações.


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Kapitel CXIX – A Longa Noite Hamburguesa

Voltei ao Brasil há quatro meses, aproximadamente. Minha intenção era continuar narrando as derradeiras aventuras de minha temporada germânica, mas meus últimos dias no Velho Mundo foram muito corridos. A atualização dos Contos Fantásticos ficaria para o meu retorno, mas continuei sem tempo. Com apenas uma semana no Rio de Janeiro, já arrumei as malas para Caxambu, onde participei de um congresso. Dias após meu retorno, vivi a maior tristeza de minha vida: minha mãe faleceu. Foi difícil seguir em frente. A dor persiste forte, lá dentro.


Mas nunca desisti de completar os Contos Fantásticos do Irmão Gui, de escrever sobre cada um dos momentos que não pude romancear antes de meu voo de volta sobre o Atlântico. A falta de vontade, de ânimo, e por vezes até de tempo, foi atrasando o projeto. Corrigirei isso a partir de agora, na periodicidade que se apresentar conveniente. As lembranças não estão mais tão vivas, mas vasculharei as profundezas de minha memória (bem como as fotos do meu álbum e os mapas que eu trouxe...) para trazer todos os detalhes que conseguir. Só é muito triste que minha leitora preferida e número 1, de quem sinto tantas saudades, não está mais aqui para comentar os próximos Kapitel.


Hoje é a vez de tratar do meu último dia e meio em Hamburgo. Comecei aquele já distante 8 de outubro dando uma volta pelos lugares da cidade que ainda não havia conhecido. Andei um bocado – sem nenhuma segurança de estar no caminho certo, naturalmente – em torno dos bonitos lagos Binnenalster e Außenalster – que, na verdade, são formados artificialmente pelo represamento do rio Alster, tributário do Elba. Tomei uma cerveja escura Flensburger Dunkel – só conhecia a versão clara – e um sorvete (acho que de café, o meu preferido) de casquinha. A caminhada era muita e... sabem como é... dava sede. Fui obrigado a continuar a experimentação de cervejas: foi a vez, então, da escura de trigo König Ludwig. O bar, tipicamente alemão, era atulhado de quinquilharias, objetos antigos, copos e garrafas, postais, e artigos dos dois clubes de futebol da cidade: o HSV (que aqui no Brasil é chamado de Hamburgo mesmo) e o St. Pauli.

Segui caminhando até chegar a uma parte do bairro de Sankt Pauli que eu ainda não conhecia. Passei por belas construções, como a igreja ortodoxa russa Kirche des Heiligen Johannes von Kronstadt e a Alta Corte Regional Haneática, uma de frente para a outra. De lá, segui para conhecer o clube St. Pauli. Apesar de ser uma equipe pequena, que vive caindo para a segunda divisão, tem uma grande torcida espalhada por todo o país – é a quinta ou sexta maior –, não se limitando à cidade de Hamburgo.

Isso acontece porque sua camisa marrom não é o seu único diferencial. É tido como um time alternativo e de esquerda. Fundado em um bairro proletário que se tornou o maior centro de prostituição da Alemanha, foi o primeiro a proibir neonazistas na torcida e tem um presidente homossexual assumido. Assim, mesmo torcedores de outros times – tirando o rival HSV, é claro – acabam simpatizando com o St. Pauli e torcendo por ele quando não é contra sua própria equipe do coração. O caráter alternativo, no entanto, não aparece na hora de vender camisas: sua lojinha, supercheia, não vendia artigos mais em conta do que os dos outros clubes alemães. Ainda assim eu não resisti, e saí de lá com duas camisas marrons, uma desta temporada e outra retrô, comemorativa do centenário.

Segui para o bairro de Neustadt e passeei pelo belo parque Planten un Blomen, que no dialeto nortista local significa “plantas e flores”. De lá se podia avistar o imponente relógio de torre da igreja barroca de São Miguel (Hauptkirche St. Michaelis), um famoso ponto turístico da cidade. Continuei caminhando pelo centro de Hamburgo e ainda tive tempo de provar mais uma cervejinha – Ratsherrn – e ver o pôr-do-sol no porto antes de voltar para o albergue.

Naquela noite eu ia reencontrar Franco, um argentino radicado em Hamburgo que eu tinha conhecido em um congresso alemão sobre América Latina (ver Kapitel LXII) em Eschborn, cidadezinha próxima a Frankfurt. Se não fosse por não dar bola para futebol, Franco seria um perfeito estereótipo do argentino: cabeludo, dramático, dançarino (professor!) de tango. Fomos a Sternschanze, o bairro onde havia a maior concentração de mulheres bonitas que vi na Europa, e lá comemos um delicioso Schnitzel, o filé de porco empanado, com Käsespätzle, uma massa alemã (ver Kapitel VII). Era o prato mais parecido com bife à milanesa. Sim, Franco também gostava de milanesa... É quase o estereótipo do argentino, como eu disse.

De lá, fomos a um restaurante especializado em vinhos para nos encontrarmos com uma antiga amiga dele, também argentina, chamada Candelaria. Rimos muito, demais. Cande é uma figuraça, totalmente agitada, hiperativa. Bebemos um bocado, mas a noite não acabou lá. Fomos a uma boate que não cobrava entrada. Não era uma boa ideia, já estávamos arrasados. Mas não fomos embora sem arrematar com uma cuba libre.

Após sairmos de lá, fui dormir no albergue, certo? Errado! Era muito mais tarde do que eu imaginava que voltaria, e precisaria fazer o check-out do albergue relativamente cedo. Franco e Cande me sugeriram, então, sair naquela madrugada e ir para a casa dela, onde eu poderia acordar mais tarde. E assim fizemos. Eles ainda agüentaram um último vinho. Eu capotei no quarto.

No dia seguinte, fui com Cande dar meu último passeio pela cidade antes de voltar a Frankfurt. Já estava com passagem de trem comprada para umas seis ou sete da noite. Passamos pela Spitalerstraße, a rua comercial “cult-bacaninha” de que falei no Kapitel anterior, onde havia uma manifestação contra não sei o quê, cheia de gente deitada no chão. Depois, fomos aonde eu só havia estado à noite: a área portuária onde fica o Mercado de Peixe (Fischmarkt). Não havia, àquela hora, peixe algum, mas o lugar é bonito e foi bom vê-lo no claro.

Voltamos para a casa dela, eu peguei minha mochila e zarpei. Muito gentil, ela me deu todas as coordenadas para chegar ao metrô e, de lá, à estação ferroviária. Quem acompanha estes Contos Fantásticos sabe que isso não garante nada. Afinal, senso de direção não é, definitivamente, o meu forte. Havia, portanto, uma tensão no ar... Mas deu tudo certo, consegui pegar o trem e chegar tranqüilo – e bem tarde – a Frankfurt. Terminava, assim, minha última viagem de mais de um dia de duração antes de retornar ao Brasil.