Um brasileiro que fala um alemão macarrônico chega a Frankfurt sem saber nem mesmo onde vai morar... Aqui narro minhas aventuras nesta temporada germânica: lugares interessantes, enrascadas em que me meto, esquisitices que percebo a cada dia. O nome do blog é uma analogia aos irmãos Grimm, alemães que compilaram muitas dezenas de contos de fada tradicionais, como Branca de Neve, João e Maria, Rapunzel, a Gata Borralheira, o Músico Maravilhoso, Chapeuzinho Vermelho, e a Bela Adormecida (mais detalhes em Vorstellung).

Centenas de fotos disponíveis em Ilustrações.


terça-feira, 5 de outubro de 2010

Kapitel CXVI – Trilogia: O Retorno do Reis

Acabou o curso de verão. Passamos de bar em bar a longa noite depois do coquetel de encerramento em Bruxelas e começaram as despedidas. A italiana Luana foi a primeira a ir embora, na véspera. Ainda teríamos o começo de sábado para dar umas voltas. Logo depois do último almoço no restaurante da sopa de lentilha (ver Kapitel anterior), foi a vez de me despedir de Patrícia e João, cujo voo de volta para Portugal seria no meio da tarde. Não muito depois foi a vez de Sofie e, por fim, eu e Edalina nos separamos no metrô. Era minha vez de ir à estação norte para pegar o ônibus baratinho para Amsterdã.

Cheguei no começo da noite. Não havia feito reserva em albergue, mas tinha pegado o endereço de alguns. Entretanto, não tinha um mapa. Estava perdido e me recusei a pagar três euros por um minúsculo mapinha em uma das várias lojas turísticas no centro. Ridículo! Em qualquer cidade europeia se consegue um mapa daqueles gratuitamente e os holandeses ficam metendo a mão!

Andei muito, o mochilão e o laptop pesavam cada vez mais. Os únicos mapas que eu tinha eram os que copiei do Google e colei em um documento de Word com os endereços dos albergues. Para me localizar, portanto, eu precisava, a cada vez, ligar o computador e tentar encontrar em algum dos micromapas a rua onde eu estava. Acabei chegando a uma rua mais residencial, e um senhor de idade viu que eu estava bem perdido.

Pegou um guia de ruas e telefonou para o primeiro albergue da lista. Esdruxula- mente, o atendente falava mal holandês, e ele falava mal inglês. Ainda assim, pôde constatar que eu tinha capturado o mapa errado que aquele albergue ficava muito longe dali. Viu que o segundo albergue da minha lista, no entanto, era ali pertinho, e me acompanhou até lá. Foi muita gentileza.

Tive muita sorte: havia uma (apenas uma!) cama vazia para aquela noite! A sorte só não era maior porque ela ficava em um quarto com 18 camas! Pelo menos as pessoas não eram barulhentas. Talvez porque se tratava de um albergue cristão. Ou seja, tratava-se de um albergue não apenas silencioso como chato, sem qualquer clima; isso em plena louca Amsterdã. Reservei mais duas noites em um quarto com seis camas (que, aliás, nem chegaram a ficar todas ocupadas).

Os funcionários eram gentis e educados, tinham sempre a preocupação de ajudar e impedir que os hóspedes se perdessem ou tivessem problemas (parece até que já me conheciam, não é?). Mas o albergue em si era uma porcaria. A internet wireless não era gratuita, e era preciso pagar para ter acesso mesmo do próprio laptop. O café-da-manhã, incluído, era paupérrimo: quando havia panquecas, estava até bom, mas foi frustrande o dia em que pedi os sanduíches e vi que eles se restringiam a dois pãezinhos com uma única fatia de queijo cada, muito fina e que sequer cobria todo o interior do pão. E ainda tive que comprar um mapa: lá custava menos, um euro, mas eles não forneciam de graça como em outros labergues em que já estive.

No dia seguinte à minha chegada, andei por toda a cidade, tentando cobrir a maioria dos lugares desenhados no mapa. Amsterdã é uma cidade bonita, cheia de antigas casinhas localizadas em ruas inclinadas de pedras, cortadas por belos canais. Aliás, uma aparência que não condiz com seu clima amalucado. As pessoas lá parecem querer ser o mais loucas possível; mesmo o comportamento alternativo não me parecia natural, tive a impressão de ser um pouco forçado. É visível também que há uma enorme quantidade de estrangeiros, seja como turistas, seja como imigrantes, seja como indecisos quanto a qual das duas categorias se enquadrar.

Não demorou muito e, sem querer, eu me encontrei no meio do famoso distrito da luz vermelha. O mais louco é ver crianças pequenas e velhinhos olhando aquele monte de sex shops e de casas de sexo explícito. Alé bichinhos de pelúcia com peru de fora são vendidos aos montes, juntamente com camisetas engraçadas alusivas a sexo e drogas. Não deixa de ser estranho olhar para janelas de frente para a rua, que parecem vitrines de lojas, e constatar que as manequins se mexem e lá o produto à venda não é a roupa, mas sexo. E há de tudo: desde jovens moças até prostitutas bem velhas, desde mulheres tão lindas que não dá nem para acreditar que existem até outras que não dá para acreditar que alguém queira algo com elas (e muito menos que pague para isso!). Não faltam garotas vindas do leste europeu, mas há também orientais, negras etc.

Outra coisa que se encontra por toda parte são os não menos conhecidos coffe-shops. É o local onde é permitida a venda de maconha e haxixe. Quem não fuma, dependendo do lugar, tem a opção de comer um bolinho aditivado. Há desde uns buracos escuros e esfumaçados com música pesada até um charmoso café com cara de limpinho, em frente a uma igreja e com belas garçonetes. No distrito da luz vermelha fica um que se chama Buldog, que se intitula o mais antigo de todos, aberto em 1971, se minha memória não falha (não, não houve nenhuma piada implícita nesta frase).

Apesar de todo o clima de animação e balada, as cervejas não são o forte da Holanda, definitivamente. São muito piores do que as vizinhas belgas. A Amstel, talvez a mais comum, é bem ruinzinha. Vale mais a pena beber uma Jupiler, que conheci em Bruxelas e é fácil de se encontrar em Amsterdã, além de ser uma das opções mais baratas.

No meu segundo dia, choveu o tempo todo. Ainda bem que tirei bastantes fotos na véspera. Aproveitei para fazer algo que eu já pretendia e que dispensa um céu ensolarado: ir a museus (que, aliás, são todos caros). Fui ao Museu Van Gogh e à Rembrandthaus. A Casa de Anne Frank ficava perto do albergue, mas a fila para entrar era tão quilométrica que desisti dela. O Van Gogh tem uma grande coleção de pinturas não apenas dele como também de artistas que o influenciaram ou que foram influenciados por ele. Pude ver Monet, Toulouse-Lautrec, Gauguin e até Gustave Coubert, de quem gosto muito, mas as pinturas que me impressionaram mesmo foram as de Jozef Israëls e de Léon Lhermitte, que eu não conhecia.

A Casa de Rembrandt é, efetivamente, um casarão onde esse mestre das sombras vivia (até que, afundado em dívidas por seu estilo de vida luxuoso, precisou abrir mão dela, terminando seus dias com pouco espaço e pouco dinheiro). Nas paredes, pinturas feitas em seu atelier por ele e por seus aprendizes. Em uma das salas, podíamos ver uma demonstração do processo de litografia.

Como meu voo de Bruxelas para Frankfurt sairia na manhã de quarta-feira, eu precisaria voltar a Bruxelas na terça para passar a noite lá. Então, deixei para ir a um último museu no final da manhã e, em seguida, pegar minhas coisas no albergue e partir de volta para a Bélgica. O museu escolhido foi o meu preferido entre os três que visitei: o Rijksmuseum. Além de ser uma construção linda (que estava, no entanto, parcialmente oculta por uma reforma em seu exterior), tem um grande acervo de brilhantes pintores holandeses, como Rembrandt, Vermeer, Jan Steen e Bosch, além de armas, prataria e porcelana. Adorei a atualíssima pintura “Fishing for Souls”, de Van de Venne, em que católicos e protestantes pescam fiéis no rio.

Peguei minha mochila e parti para a estação Amstel, onde, suposta- mente, pegaria o ônibus baratinho para Bruxelas às três e meia. Suposta- mente, havia o ônibus das três e meia e, se tudo desse errado, ainda havia um às seis e meia, segundo vi na internet. Tudo apenas “supostamente”. Chegando lá, às 3h10, tive a desagradável notícia de que, naquele dia, o último ônibus tinha saído às 2h30. No dia seguinte, sim, haveria esses horários.

Era preciso inventar um plano B. Voltei à estação central e comprei o bilhete de trem. Era bem mais caro, 41 euros, mas ainda um preço viável; no sentido contrário, de Bruxelas para Amsterdã, o preço era surreal: 87 euros! Ainda assim, como não aceitaram meu cartão de crédito, fiquei praticamente seu dinheiro vivo até a volta para a Alemanha. Cheguei à Bélgica com o dia ainda claro. Não havia reservado albergue mas tinha pegado uma lista de três opções com Willy, o sino-californiano que dividira quarto comigo durante o curso de verão. Não haveria de ser difícil encontrar um. Pelo menos, isso era o que eu achava. O avanço das horas e o escurecimento do céu me fariam mudar completamente de opinião.

Fui até a primeira opção, a pé, com todo o peso da mochila e do computador sobre os ombros. Era um albergue bem central, tudo de que eu precisava. Foi muito frustrante ouvir que todos os lugares estavam ocupados. O cara disse que, se eu quisesse, poderia esperar lá para ver se haveria alguma desistência. É claro que não fiquei. Queria achar o quanto antes um albergue para deixar as minhas coisas, e seria bom se fizesse isso ainda de dia. Seria...

Andei muito até chegar a outro albergue da lista. Dos três que eu tinha o endereço, apenas aquele primeiro era bem central. Apesar de afastado e localizado em uma rua meio escura, parecia um lugar legal. Mas isso não faria diferença. Também estava lotado! Exausto e já muito preocupado, perguntei à atendente (que tinha aquele jeitinho charmoso e acelerado de francesinha cool) se ela sabia de algum lugar não muito caro onde eu poderia passar a noite. Gentilíssima, a menina começou a telefonar para outros albergues e, ao encontrar um, fez a reserva para mim e me deu o endereço de lá e um mapa, explicando o caminho mais fácil para chegar lá.

Era, portanto, apenas questão de tempo. Graças às boas indicações, achei o lugar sem maior dificuldade. Havia no meu quarto um figuraça estaduni-dense, com bigode à la Hercule Poirot, chamado Patrick, descendente de escoceses e nascido no dia de São Patrício, que falava pelos cotovelos (e eu só entendia metade do que dizia). O albergue parecia bom e tinha um bom café da manhã. Este começava a ser servido às sete e eu já estava, antes dessa hora, a postos. Tomei o café rápido e saí bem cedo, para não ter problemas. E não teria nenhum se não fosse por alguns percalços...

Se tem algo que não compreendi bem como funciona são os trens em Bruxelas. Perguntei para o controlador se o trem que ia sair era o que iria para o aeroporto e, sem paciência e desatento, ele me deu uma resposta que deu a entender que era. Mas não era. Os controladores não fazem nenhuma questão de orientar os passageiros perdidos. Quando achei estranho e perguntei para outros passageiros, eles me disseram que era no outro sentido.

Saltei naquela cidadezinha-satélite e perguntei para o vendedor da estação ferroviária local como eu poderia ir para a Estação Norte, de onde eu sabia que sairia o trem para o distante aeroporto. Ele me deu a indicação, mas acabei novamente saltando errado. Quando cheguei a Estação Norte, não tive problemas para seguir para o aeroporto. Mas já era praticamente a hora do meu voo.

Quando cheguei ao balcão da Lufthansa, perguntei ao funcionário se ainda era possível ir no voo, porque eu estava atrasado. É claro que não era. Ele me orientou a ir ao balcão de remarcação de viagens. Minha surpresa foi a tranqüilidade do balconista da Lufthansa para remarcar minha viagem para o voo seguinte, menos de duas horas depois, sem cobrar nada por isso. Fiquei totalmente fã da Lufthansa! Isso é que é saber tratar bem os clientes!

As confusões continuariam até o último momento. Chegando ao prédio onde moro, tive a desagradável surpresa de que não havia ninguém em casa. E como fiz um acerto com Mario, que aluga o quarto para mim, para ele alugá-lo nessas duas semanas em que estive fora, eu estava sem a chave. Telefonei para ele e soube que Manfred viria, mas ainda demoraria uns quarenta minutos. Demorou mais. Fiquei uns vinte do lado de fora, na rua, até que enfim algum vizinho chegou. Entrei “de carona” e me sentei na escada.

Peguei meu laptop, consegui captar fraquinho o sinal da internet da minha casa, e lá fiquei esperando, sob olhares desconfiados de vizinhos que entravam ou saíam. Enfim, o final foi feliz e toda a aventura valeu a pena. Não há trilogia sem momentos difíceis e contratempos, não é mesmo?

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