Um brasileiro que fala um alemão macarrônico chega a Frankfurt sem saber nem mesmo onde vai morar... Aqui narro minhas aventuras nesta temporada germânica: lugares interessantes, enrascadas em que me meto, esquisitices que percebo a cada dia. O nome do blog é uma analogia aos irmãos Grimm, alemães que compilaram muitas dezenas de contos de fada tradicionais, como Branca de Neve, João e Maria, Rapunzel, a Gata Borralheira, o Músico Maravilhoso, Chapeuzinho Vermelho, e a Bela Adormecida (mais detalhes em Vorstellung).

Centenas de fotos disponíveis em Ilustrações.


domingo, 3 de outubro de 2010

Kapitel CXV – Trilogia: As Duas Bruxelas

Enfim, cheguei a Bruxelas. O aeroporto é estranho, parece um labirinto. É preciso andar muito lá dentro, subir escadas, descer escadas, dar voltas e mais voltas em caracol... tudo bem pouco racional. Fui seguindo outros passageiros, é claro, para achar o lugar de pegar a bagagem. Só que, quando percebi, eu já estava na área de saída do aeroporto. Precisei pedir ajuda para o pessoal da segurança para entrar novamente e pegar minha bagagem.

Bruxelas é uma cidade bem maior do que eu esperava. Capital da União Europeia e sede da OTAN, tem grande quantidade de estrangeiros. Por esse motivo e pela combinação de casas antigas com prédios modernos, era inevitável que eu a comparasse com Frankfurt, e a visse como uma versão belga da cidade onde estou morando. Só que não apenas achei as distâncias maiores em Bruxelas como a sua população é uns 30% mais numerosa do que a de Frankfurt.

Logo me chamaram a atenção os prédios antigos, com amplo predomínio das cores bege e cinza, as impressio- nantes seqüencias de casas conjugadas (sem nenhum espaço entre elas), também a presença de muitas casinhas de tijolos, e as amplas áreas das praças e prédios públicos, em contraste com a aglomeração das velhas casas “amontoadas”. Não faltam estátuas, principalmente de homens montados em cavalos, como chamou a atenção minha mãe. O pior da cidade é a antipatia da maioria dos garçons e dos funcionários dos transportes públicos. Um aspecto extremamente charmoso são as cenas de quadrinhos pintadas em grandes dimensões nas paredes de vários prédios; adorei, e fotografei várias.

Há algo, no entanto, bem mais pitoresco na cidade, e na Bélgica como um todo. É um país que não é bem um país. É dividido em duas regiões, uma em que se fala holandês – Flandres – e outra em que se fala francês – Valônia. Não é incomum que flamengos não saibam falar francês e que valões desconheçam o holandês. Enquanto os flamengos aprendem francês no colégio mas depois pouco o usam, inclusive podendo se ofender se você se dirigir a eles na língua francesa (é melhor usar com eles o inglês), os valões podem não ter nem mesmo o menor conhecimento da língua holandesa, pois têm a opção de estudar na escola holandês ou inglês, como preferirem.

O país tem as duas regiões e, no seu centro, fica a capital, Bruxelas. Trata-se de uma área bilíngüe, localizada próxima ao limite entre as duas regiões mas dentro de Flandres. Originalmente uma cidade flamenga, acabou, por sua importância, recebendo tantos valões que, hoje, a língua predominante, que se ouve sempre nas ruas, é o francês.

Só que no país tudo tem que ser dividido em cada uma das culturas lingüísticas. Todas as ruas de Bruxelas têm um nome em cada idioma, os partidos políticos são sempre dois de cada ideologia (há um socialista flamengo e um socialista valão, um liberal de Flandres e um liberal da Valônia, etc.) e até a universidade é, na verdade, duas. Meu curso de verão sobre partidos políticos durou uma semana, acontecendo primeiro no campus valão (Université Libre de Bruxelles) e, nos últimos cinco dias, no flamengo (Vrije Universiteit Brussel).

Acabei chegando tarde ao hotel que estava reservado para os estudantes do curso de verão. Tomei um banho e fui à universidade. Não tinha levado o mapa e custei muito a achar o local, que era o instituto de investigações europeias. Cheguei uma hora depois ao coquetel de inauguração (que, a propósito, foi bem mixuruca). Fui o último não desistente a chegar: os demais participantes ou chegaram muito mais cedo ou não foram nesse dia. Aquele primeiro momento foi meio frio. Eu tentava fazer piada, puxar assunto, mas todos estavam meio tímidos e retraídos. Mas era apenas o “gelo” inicial. A turma tinha muita gente legal e nos divertiríamos bastante.


Eu era o único latino-americano do curso, cujo corpo discente se destacava pelo fato incomum de, entre quinze alunos, três serem portugueses. Eles, aliás, se tornaram meus melhores amigos lá, junto com a italiana Luana, sulista de sangue quente nascida em Puglia. João, sempre muito engraçado, nasceu em Évora e é filho de pais alentejanos. Estuda na Universidade de Aveiro com Patrícia, que vem dessa cidade mesmo. Edalina nasceu na Espanha, filha de pais cabo-verdianos, mas foi novinha para a Terrinha e também é “tuga”.

A turma tinha ainda três estadunidenses: uma judia de Ohio chamada Sarah, que sempre falava alto, rápido e com muita gesticulação; um chinês de Taiwan que se mudou criança para a Califórnia e adquiriu nacionalidade ianque (chama-se Willy e foi meu companheiro de quarto); e uma estudante de relações internacionais radicada na Alemanha. Alás, havia também uma alemã da Baviera, uma coreana que mora no Texas, um romeno meio doido, o francês Matthieu (que não fala português mas tem pai lusitano; eu e João começamos a chamá-lo de Mateus) e três belgas.

Entre os belgas não havia nenhum valão. Maïté, que pouco fala holandês e é francófona (e fuma como uma francesa), reclamou quando eu disse que ele era da Valônia. Observou que era de Bruxelas, e que, apesar de falarem francês, bruxelenses e valões são completamente diferentes. Ah, bom. A propósito, ela é também, provavelmente, o único caso do mundo de alguém que foi à Polônia com a motivação de aprender a falar inglês (?!).

Os demais belgas da turma eram flamengos. Um era Tom, que era gente-boa mas deu uma declaração tão equivocada como infeliz: disse que o único time de futebol brasileiro que conhecia era o Boca Juniors. Lamentável e imperdoável! A outra belga, que foi a que ficou mais próxima dos luso-ítalo-brasileiros, especialmente no final, era Sofie. Alta, loira, magra, bonita, simpática, elegante, delicada e sorridente, ganhou o apelido de “princesa da Disney”. Cinderelamente, aliás, deixou o sapato cair enquanto andava conosco em uma rua de Bruxelas, mas eu bobeei e não peguei a tempo.

Eu, João, Patrícia, Edalina e Luana saímos vários dias juntos, depois da aula da tarde, passeando pela cidade, conhecendo os lugares turísticos, jantando e bebendo cerveja. Às vezes alguma outra pessoa ia conosco, às vezes algum deles ficava no hotel para descansar ou preparar alguma coisa relacionada os estudos. Eu fui o único que saí todos os dias, sem exceção, inclusive na véspera da minha apresentação. Foram saídas leves, voltando cedo, mas me recusei a passar algum dia trancafiado no hotel. Além disso, sempre quando eu voltava, ainda tinha pique para ir para a internet. Como as aulas começavam às nove da manhã e as universidades (sim, os dois campus) não ficavam perto do hotel, passei duas semanas dormindo seis horas ou menos todos os dias.

A Bélgica é a grande rival da Alemanha na disputa pelo posto de país com as melhores cervejas do mundo. Tive seis meses na Alemanha para provar várias cervejas. Como só estive duas semanas na Bélgica, precisava ser rápido para ter base para comparação. E provei várias cervejas: Westmalle Trappist, Leffe Brüne, Leffe Blonde, Chimay Blue, Duvel, Waterloo, Judas, Vedett, Grimbergen Dubbel, Jupiler, Orval, Trappistes Rochefort e até a não-alcoólica Tourtel (essa por acidente, porque o Tom me disse equivocadamente que era uma stout).

Provei ainda cervejas lambic (de trigo, com fermentação espontânea), faro (versão mais adocicada da lambic), gueuze Mort Subite Framboise (lambic misturada com framboesa; não é ruim, mas prefiro cerveja normal) e St Lamvinus Cantillon (lambic misturada com uva, lembra um vinho beeeem doce, argh!). Como não anotei, no entanto, não tenho certeza se realmente bebi todas essas e provavelmente estou me esquecendo de alguma.

Cheguei à conclusão de que certamente prefiro as alemãs. Se fizermos uma comparação com os vinhos (não sei se é uma boa comparação, mas acho que possibilita expressar minha avaliação), as cervejas alemãs são como vinhos secos e as da Bélgica como vinhos suaves. As cervejas belgas têm em geral um gosto mais frutado e, apesar de terem alto teor alcoólico, não são encorpadas como as germânicas. Minha cerveja preferida entre as que eu provei lá foi justamente a que mais me lembrou as boas alemãs: a ótima Chimay Blue. Ah, e valeu a pena prová-las, só para conhecer, mas não achei nada saborosas as lambic e as faro; prefiro inclusive o “suquinho de framboesa” gueuze a elas.

Nem só de bebida vive a Bélgica, é claro. Os belgas são especialistas em batatas fritas, o que não como, mas também têm enorme tradição nos waffles (ou gauffres, em francês). Comemos as duas versões com chocolate (de que também são exímios produtores): o de Liège, que é mais durinho, e o de Bruxelas, mais mole. Não sei qual é melhor, mas são ambos muito tradicionais no país.

Um dia, fomos a um restaurante português assistir ao clássico lisboeta entre Benfica e Sporting, o Fla-Flu da capital lusa. E para a alegria de Edalina, que estava tensa, e para leve decepção de Patrícia (bem leve mesmo, aliás, pois não estava lá muito preocupada), deu vitória “encarnada”: fácil, fácil, dois a zero para o Benfica. Comemos bifanas, uns sanduíches de carne de porco, e, lá, nossas cervejas eram lusas: Sagres e Superbock.

O restaurante aonde fomos mais vezes, no entanto, foi um que tinha uma ótima sopa de lentilhas. Foi sugestão de Luana, que ficou viciada no lugar. Tomei a sopa em dois dias, e em outros dois comi um gostoso crepe com diferentes queijos. Aliás, Luana merece um comentário adicional em relação à culinária: disse que adora comida inglesa e que está cansada de ver restaurante italiano por todos os lados. Como assim? Está cansada de comer massa e acha a culinária inglesa boa?! Bizarro. Ela mesma já contou que dizem que é uma italiana fake: também não gosta de café, nem de futebol. Mas após duas semanas deu para ver que não é completamente “falsificada”: fala com as mãos, tem sangue quente e não admite que a massa não esteja al dente.

Houve um dia que fomos todos convidados pela organização do curso para ir a um restaurante típico belga. Lá, comi um filet americaine tartar (foi a segunda vez que comi esse prato; a primeira, em Paris, está descrita no Kapitel XC). De sobremesa, mandei ver em uma dame blanche, um sorvete de creme com calda quente de chocolate; o gosto lembrava o do profiterole e é uma sobremesa popular no país.

Também houve dia em que fomos a um restaurante italiano, a um tailandês, e em que comemos pizza. O mais inusitado certamente foi a vez em que comi canguru. Nunca imaginei que provaria tal carne na Bélgica. É boa, mas lembra muito a bovina, não sendo, portanto, muito diferente do trivial. E a carne de canguru estava macia, diferentemente do que, no passado, eu tinha ouvido falar sobre ela.

O bandejão dos dois campus também não era ruim – aliás, era bem melhor do que o Mensa da Universidade de Frankfurt. O que era complicado era encarar as enormes filas. É claro que houve dias sofríveis, como uma péssima sopa ou falta de acompanhamentos razoáveis, mas no geral havia boas opções. Inclusive pratos típicos belgas, como os boulettes à la liégeoise e o vol-au-vent.

Mas não pensem que nossos passeios se resumiam à comilança. Desbravamos a cidade por vários dias, especialmente no domingo, quando a maioria das ruas estava fechada para os carros. Fomos algumas vezes à bela Grand Place, inclusive presenciando o lindo espetáculo de luzes no prédio da prefeitura. Também fomos ao Atomium, visitamos o Parlamento Europeu, e passamos a mão em uma imagem de Jesus que dizem que dá sorte.


Cruzamos outras tantas oportuni- dades com o conhecido Maneken Pis. É a famosa fonte em forma de um menino fazendo xixi. Quando visitas ilustres vêm de outros países, costuma-se vesti-lo com trajes que homenageiem o visitante. É uma cópia dele o Manequinho, que, localizado no Rio de Janeiro, tornou-se um símbolo do Botafogo. Todas as pessoas ficam decepcionadas com o Maneken Pis, por ser muito menor do que se imagina. De fato, é pequenino, parecendo ainda menor pelo contraste com a grande estrutura atrás dele.

Mas é um ponto inevitável de visitação, justificando a estampa de uma camiseta que eu vi, com o desenho dele e a inscrição “eu sou pequeno mas sou o dono do pedaço”. Há na cidade também a versão feminina e a versão canina do Maneken Pis: a menina, Jeanneke Pis, está agachada urinando, e o cão tem até a perninha levantada. Só que, se o Maneken Pis tem sua importância pelo fato de ser a primeira fonte da cidade, instalada no século XVII, a menina e o cachorro não têm nem de longe o mesmo destaque, até porque têm poucas décadas de existência.

Um dia, fomos ao museu histórico, que abriu à noite, gratuitamente. Mas funcionava de um modo diferente: estava com as luzes apagadas e lanternas eram distribuídas para as pessoas. A ideia era divertida, apesar de, obviamente, não motivar muito a ler textos mais extensos. Havia algumas coisas bem interessantes, como cartazes políticos. O que mais gostei foi a antiga charge “Pyramide a Renverser”. Com o desenho de uma pirâmide em que o rei estava no topo, localizando-se abaixo dele, nesta ordem, clérigos, militares, burgueses e, em sua base, os populares, a charge tinha as seguintes inscrições ao lado dos respectivos personagens: “A Realeza – Eu reino sobre vocês; O Clericalismo – Eu oro para vocês; O Militarismo – Eu atiro em vocês; O Capitalismo – Eu como para vocês; O Povo – Eu trabalho para vocês.” Simplesmente brilhante.

No sábado, viajei com Patrícia, Edalina, Luana, João e a coreana para Gent e Brugges. A ideia original era ir a Brugges, mas quando Patrícia consultou Tom, ele disse que a cidade era uma farsa. Ela perguntou se não era interessante ir lá e ele respondeu: “se você gosta de Disneylândia”. Obviamente era um exagero, mas de fato a dica de ir antes a Gent foi ótima. É uma cidade tão medieval quanto Brugges, só que mais bonita e menos turística. Basicamente é a mesma coisa sem aquele monte de propaganda em cima.

Só me irritou o fato de que cobravam para ver a Catedral. Eu já tinha ido a igrejas que deixavam ver de graça, já vi cobrarem só para conhecer as catacumbas ou alguma sala com relíguias. Já tinha visto até a parte cobrada ser um terço da igreja, o que já me parecia um excesso. Mas o que presenciamos em Gent foi ridículo: simplesmente um pedaço minúsculo depois da porta estava com acesso liberado, e uma cortina preta cobria a visão da igreja inteira, incluindo o altar. Como se não bastasse, uma leva de turistas saía irritada de lá reclamandado que não havia nada para ver e que tinham jogado quatro euros fora. Obviamente não vimos a igreja, portanto. Mas a cidade é bonita, e valeu a pena pagarmos para subir em uma torre, que tem vista panorâmica.

Minha estadia na Bélgica foi proveitosa. Não apenas porque participei de um bom curso, mas porque me diverti um bocado e fiz ótimos amigos: Patrícia, sempre boazinha e perita em imitar sotaque brasileiro do interior; Luana, a italiana algo reclamona e gente-finíssima; João, o camarada com quem dei muitas gargalhadas; e Edalina, que sempre brincava que eu e ele éramos “os piores” por causa da bagunça que aprontamos na cidade (vários garçons pediram, com educação ou com grosseria, para falarmos baixo); sem falar na princesa belga Sofie. Amigos que não esquecerei. Os “piores”, sem dúvida. Como dissemos: “os piores serão os melhores”.

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