Um brasileiro que fala um alemão macarrônico chega a Frankfurt sem saber nem mesmo onde vai morar... Aqui narro minhas aventuras nesta temporada germânica: lugares interessantes, enrascadas em que me meto, esquisitices que percebo a cada dia. O nome do blog é uma analogia aos irmãos Grimm, alemães que compilaram muitas dezenas de contos de fada tradicionais, como Branca de Neve, João e Maria, Rapunzel, a Gata Borralheira, o Músico Maravilhoso, Chapeuzinho Vermelho, e a Bela Adormecida (mais detalhes em Vorstellung).

Centenas de fotos disponíveis em Ilustrações.


sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Kapitel CII – A Casa do Urso

Depois de vários dias só comendo besteira, tive hoje minha primeira refeição decente em bastante tempo. Comi um prato de frango com molho de leite de coco e curry e bebi a cerveja tailandesa (?!) chamada Chang, no ótimo resturante Krua Thai. Já almocei lá outras vezes antes. Fica no bairro de Bockenheim, perto da universidade, para onde fui em seguida, usar o programa de estatística SPSS e dar uma olhada em um livro.

Minha ida à universidade marcou o fim de uma seqüência de três dias enfurnado em casa, de onde só saí para fazer compras no supermercado e colocar o lixo para fora. Esse período restrito ao circuito quarto-banheiro-cozinha me alertou para uma coisa: eu ainda não tratei nestes Contos Fantásticos, com a devida profundidade, do lugar onde moro. Pois corrigirei essa falha agora.

Moro em um WG (sigla para Wohngemeinschaft), que é um apartamento compartilhado. Comigo moram o já famoso (São) Manfred, muitas vezes citado aqui, e duas meninas, também alemãs: Suzanne e Janine. Este seria o último mês das duas antes de voltarem para suas cidadezinhas, mas parece que estão negociando com Mario (que Mario? o espanhol que aluga o apartamento, é claro) para prorrogarem o aluguel. Elas não são más pessoas, mas há muito pouco diálogo com elas. São muito amigas entre si, mas não demonstram qualquer interesse em se aproximar de nós dois (tratei disso no Kapitel XLV). Já Manfred é um cara legal, que me ajudou várias vezes. Mas não tem paciência de me ajudar no alemão e sempre zomba das minhas trapalhadas. Que não são poucas.

O WG fica no bairro de Dornbush. Está longe de ser badalado como Sachsenhausen ou bonitinho como Bockenheim, mas é um bom lugar. Como disse no Kapitel II, tem boas opções de transporte e seviços. Vivo a umas duas quadras da estação de metrô Dornbush, que é a primeira no sentido Sul-Norte que não é subterrânea (tipo linha 2 do metrô carioca, na superfície).

Além disso, o maior supermercado da cidade fica perto da estação anterior, a Miquel-/ Adickes- allee/Polizei- präsidium (vocês não imaginam o quanto é viciante ficar repetindo esse nome enorme quando ele é anunciado no metrô). Perto da minha casa ficam ainda o restaurante italiano Cosi Cosi, um oriental, uma padaria, uma loja que vende embutidos onde também já almocei algumas vezes, um banco (onde saquei dinheiro do Banco do Brasil várias vezes), o escritório da administração da região (o Bürgeramt)...

Meu endereço diz que moro na Eschersheimer Landstraße, mas é mentira. O meu número ocupa o quarteirão inteiro, e é um número comercial. Depois, virando-se a esquina, o número se repete, mas com as letras A, B, C... Pois é em um desses que eu vivo. Só que aí já não é mais, realmente, na Eschersheimer Landstraße. O nome da rua é Carl-Goerdeler str.

Uma vez, de curiosidade, fiz uma pesquisa na Wikipedia e descobri que o tal do Carl Goerdeler era um político monarquista conservador, que, inicialmente, considerou Hitler um ditador ilustrado, com potencial para fazer o bem. A partir de 1933, mudou de ideia, e passou a fazer oposição a ele e a tentar ajudar comerciantes judeus perseguidos. Se uma tentativa de matar Hitler em 1944 tivesse dado certo, ele seria o novo chanceler. Como ela falhou e descobriram que ele estava envolvido, foi preso e torturado por meses e, depois, executado.

Mas é na Eschersheimer Landstraße que eu ando sempre. Pelo que me explicaram, várias ruas em Frankfurt levam o nome de outras cidades porque eram, originalmente, as rotas para viajar para tais lugares. A tal da Eschersheim, bem ao norte e onde nunca estive, originalmente era uma cidade independente, mas foi anexada a Frankfurt em 1910. Frankfurt cresceu muito incorporando cidades vizinhas, entre elas Bockenheim, bairro onde fica o campus onde eu tive aulas de política. As belas – e parecidas entre si – Warte (Bockenheimer Warte, Galluswarte, Friedberger Warte, Sachsenhäuser Warte) eram torres de guarda que ficavam nos antigos limites de Frankfurt, mas, com a expansão, hoje ficam bem no meio da cidade (ver Kapitel LX).

Vivo no quarto andar, mas isso não significa nada. Na Alemanha, bizarramente, os apartamentos não têm numeração, e as referências são simplesmente o número do prédio e o seu sobrenome. Ou seja, trata-se de um prato cheio para um correio ineficiente como o alemão. Isso me causou muita dor de cabeça, como já praguejei nos Kapitel LIV e LXVIII.

Meu apartamento tem uma sala pequena, uma cozinha idem, mas quartos bastante espaçosos (o meu é enorme!). Além disso, há dois banheiros com chuveiro, o que diminui consideravelmente a possibilidade de conflitos entre nós quatro. A sala para pendurar a roupa para secar fica fora do apartamento, no subsolo do edifício e, bizarramente (levando-se em conta que roupas secam melhor no calor), está sempre muitos graus mais fria do que em qualquer outro lugar que não a geladeira. O local para colocar o lixo fica fora do prédio e atende a todos os edifícios que usam a mesma numeração. Lá, há lixeiras para plástico e embalagens, outras para papel e duas para lixo orgânico. Tudo bastante alemão (o sistema está explicado no Kapitel XXX).

O meu quarto tem 25 metros quadrados, se o anúncio dizia a verdade (eu nunca o medi, mas é grande). Tem um bom armário, uma cômoda, uma pequena mesa, uma cama meio desconfortável, uma mesa de cabeceira moderninha, uma estante com cara de escada em que não cabe quase nada (mas ponho livros lá assim mesmo), um sofá-cama e uma televisão miúda que pega poucos canais (nunca asssisti a ela e, quando tentei, não achei a transmissão de nenhuma partida da Copa).

O que mais chama a atenção, no entanto, é um imenso ursão de pelúcia (escrevi sobre ele no Kapitel II; continua na mesma posição e no mesmo lugar). Não é meu, nem comprei para dar de presente. Parece que Manfred ganhou há muito tempo e, como não tem onde colocá-lo, deixou-o aqui. Simplesmente aqui já estava quando cheguei, a aqui ficou, pois não me atrapalha e não quis ser chato. É um tanto bizarro ver um ursão no canto do quarto, mas já me acostumei. Pena que ele só divide o espaço comigo, não os custos do aluguel. Aliás, debaixo dele há uma gaveta cheia de tralha que também não é minha: sacos plásticos, parafusos, lâmpadas... Ou seja, é melhor deixar o urso lá; pelo menos esconde a tranqueira toda.

O urso não é a única peça de “decoração” que chama a atenção em meu quarto. Há também um enorme mapa-múndi em alemão atrás da minha cama. É interessante que posso olhar para “Die Welt”, o mundo, e ver como se chamam os países nesta língua que tanto custo a aprender. Vereinigte Staaten Von Amerika, Gross Britannien, Schweden, Weiss-Russland, Aserbaischan, Ägypten, Elfenbeinküste (este eu aprendi na Copa!), Simbabwe... Legal, né?

Mas o fato de eu gostar de geografia é apenas uma coincidência. Mario colocou o mapa lá para esconder umas manchas na pintura da parede. É que o antigo morador deixou a roupa secando no interior do quarto e criou mofo. Aí, antes de eu me mudar, Mario pintou as partes afetadas e ficou de fazer uma pintura geral quando eu me ausentasse por mais tempo. Bem... passei duas semanas na França e continua na parede, ali atrás da China, da Mongólia e da Indochina, uma baita mancha mais clara.

Parece que estou reclamando, mas não estou não. Não tenho motivos para isso. O urso e as manchas são mais casos pitorescos do que realmente problemas. Além disso, o Mario é gente-boa e compreensivo, não tem rigor excessivo com o prazo do pagamento do aluguel e, assim como Manfred, já me deu várias dicas da vida em Frankfurt. E meu quarto é realmente espaçoso. Tanto que é possível ficar três dias enfurnado nele. Mesmo tendo que dividi-lo com um urso tamanho família.

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