Um brasileiro que fala um alemão macarrônico chega a Frankfurt sem saber nem mesmo onde vai morar... Aqui narro minhas aventuras nesta temporada germânica: lugares interessantes, enrascadas em que me meto, esquisitices que percebo a cada dia. O nome do blog é uma analogia aos irmãos Grimm, alemães que compilaram muitas dezenas de contos de fada tradicionais, como Branca de Neve, João e Maria, Rapunzel, a Gata Borralheira, o Músico Maravilhoso, Chapeuzinho Vermelho, e a Bela Adormecida (mais detalhes em Vorstellung).

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terça-feira, 1 de junho de 2010

Kapitel LXII – Duas Noites, Três Cidades, Treze Nações e Uma Hora de Sono

Quinta-feira, sexta e sábado passados, definitivamente, não foram dias comuns. Eu tinha um congresso para ir que aconteceria da tarde de quinta à manhã de sábado, em Eschborn, uma cidadezinha sem atrativos na periferia de Frankfurt. Eu havia combinado, também, de ir a Mainz (ou Mogúncia? Ainda não me decidi. Ver Kapitel XLIII) visitar um casal de amigos alemães, Tobias e Marion Mannhold (não confundir com a Marion Reiser, professora da universidade). Desde que cheguei ao país ainda não tinha me encontrado com eles.

Soube do congresso por uma amiga chilena, Alejandra, que mora na Baviera e é casada com um alemão. Eu a conheci ano passado, no congresso mundial de ciência política em Santiago. Ela me contou sobre o evento de Eschborn, promovido pela Associação Alemã de Investigação sobre a América Latina – ADLAF (sim, existe uma associação alemã assim!). Disse que pretendia ir e perguntou se eu não queria ir também. Havia muitos motivos para eu ir e nenhuma boa razão para eu não ir. O congresso era gratuito, aconteceria em uma cidade que fica apenas a uns 15 ou 20 minutos de Frankfurt, seria realizado justamente em uma semana em que eu não teria aula na universidade, e seria uma boa oportunidade de conhecer mais gente. Fui então, né?

O congresso misturava os mais variados temas, tendo a América Latina como eixo, de modo que era possível, em uma mesma seção, ver trabalhos sobre tango, desenvolvimento financeiro, religião, e missão cubana em Angola. Como qualquer simpósio, teve trabalhos de todos os níveis de qualidade. O mais incrível foi que todas as apresentações foram em espanhol, mesmo as dos autores alemães. Quer dizer, houve dois brasileiros que não apresentaram em espanhol: um falou em português e a outra, em portunhol assumido.

O ponto alto acadêmico foi a palestra monumental de Enrique Russell Ambrosini, derrubando as premissas do eurocentrismo, realizada na Biblioteca Nacional – único evento do congresso a ocorrer em Frankfurt –, que fica a não muitas quadras da minha casa. Esse foi o ponto alto acadêmico. Mas não o único ponto alto. Depois de Eschborn, era a vez da “eschbórnia”!

Na primeira noite houve, é claro, um coquetelzinho, após a conferência de Russell. Mas a coisa animou mesmo no segundo dia. Após as palestras da tarde, um grupo foi a Frankfurt para beber uns coquetéis, caipirinhas (elas são populares na Alemanha!) e cervejas. Fomos eu, Alejandra, a venezuelana Maryhen (minha aluna), e mais dois argentinos – Franco e Ramón, o colombiano David, o chileno Álvaro, o costarriquenho Vladimir e uma alemã de quem não sei o nome.

Aliás, ela foi a responsável pela gafe do começo da noite: disse que os equatorianos eram feios, porque eram muito misturados. Vendo que todos estavam com os olhos arregalados de espanto com tão surreal declaração, tentou consertar: “os índios são bonitos, feios são os que são misturados com os brancos”. Bem... pegamos no pé dela por horas a fio, é claro.

Maryhen e Alejandra foram embora, mas os demais seguiram para outro bar, onde bebemos mais! Depois, juntaram-se a nós três alemães: Florian (outro, não o meu amigo da universidade), Sophie e Irene. Para vocês terem uma ideia de como estava a situação, vale dizer que Álvaro gastou um bom tempo contando para Florian como sua avó era importante para ele... Manguaça total!

Sophie, Irene e a outra alemã, a que não acha equatorianos bonitos, foram as primeiras a partir de lá. Mais tarde, foi a vez de Franco e Vladimir, que estavam hospedados em Eschborn e precisavam pegar o trem de volta. Eu, David, Ramón, Álvaro e Florian, no entanto, ainda não estávamos satisfeitos, apesar de já passar das duas da madrugada e de o congresso ainda ter seções na manhã seguinte. A namorada de David, uma polonesa, estava com umas amigas em um bar em Sacksenhausen. Lá fomos nós!

Pausa para um pequeno interregno: meu amigo paulista Vítor tinha me enviado um torpedo me chamando para ir ao Balalaika, o bar musical que descrevi no Kapitel LVI, pois ele estaria lá a partir das onze. Concluí que não poderia encontrá-lo, pois já estava com o outro pessoal, que tinha conhecido no congresso. Pois qual não é minha surpresa quando nos encaminhávamos para o bar onde estava a namorada de David e o nome do lugar era... Balalaika!

Na mais incrível das coincidências, a polonesa namorada do David era professora de alemão do Vítor! As amigas dela, na verdade, eram colegas de turma dele e alunas dela: uma chinesa, uma ucraniana e uma colombiana. Lá no bar também estavam personagens descritos no mencionado Kapitel LVI, como a figuraça estadunidense dona do bar, o pianista romeno Marius, o cantor espanhol Nacho e a paulista Juliana, que, mais uma vez, soltou a voz. Lá ficamos até depois das cinco. Depois, uma passada no mesmo restaurante libanês da ida anterior ao Balalaika. Desta vez, não tinham shawarma, e por isso provei um sanduíche com uma escura lingüiça árabe picante chamada sujuk. Todo o pessoal afirmou que chegaria no congresso às nove. Eu mesmo disse que às nove seria difícil, mas que eu estaria lá.

Deitei-me às 6h20. Minha ideia inicial era acordar às sete, mas não podia dormir menos de uma hora. Apesar de ainda ser muito pouco, dormir uma hora é, na minha opinião, o mínimo possível para haver algum efeito de descanso no corpo. Marquei o despertador, então, para as 7h20. O incrível é que não apenas acordei, como cheguei pontualmente às nove em Eschborn. Fui o único a chegar na hora e, dentre os que estiveram comigo até o fim na Balalaika, somente Florian também foi, aparecendo umas duas horas mais tarde do que eu.

Meus feitos ainda não tinham terminado. Apesar de ter tido apenas uma mísera horinha de sono, ainda ficaria muitas outras sem dormir. Após almoçar com Florian, Sophie e Irene, ainda passeei com os dois primeiros pela margem do rio Main. Às cinco e meia eu me despedi deles e parti para o metrô. Ainda tinha uma viagem para fazer!

Cheguei à Hauptbanhof (estação principal de trem) de Mainz/Mogúncia às sete, onde Tobias, doravante chamado Tobi, estava me esperando. Demos uma volta na cidade, comemos um gostoso queijo cremoso típico de lá – o Spundkäse – e bebemos o não menos típico vinho branco batizado com água gasosa. Diferentemente do Apfelwein, o vinho de maçã que os frankfurtianos tomam (também com água), o de Mainz é de uva mesmo.

Depois, fomos até a casa do Tobi para buscar a Marion. Lá nós três tomamos uma cerveja Jever e saímos. Assim como ocorrera antes em Frankfurt (ver Kapitel XXXVI), era Noite dos Museus em Mogúncia. Em um evento como esse, não vale a pena ir a um grande museu gastar todo o tempo lá (como ocorreria no Museu Gutemberg, que ainda preciso conhecer); é melhor ir a muitos museus pequenos. Fomos, então, a várias salas alternativas, com manifestações artísticas inusitadas e pinturas perturbadoras.

O museu mais curioso era o museu de sete graus. Sim, ele foi todo construído com uma inclinação de sete graus. Não apenas por fora, como todas as suas paredes, o elevador, tudo é inclinado! Em um bar anexo, ocorria algo não menos curioso. Uma multidão acompanhava ansiosa por um telão o resultado de um concurso musical que eu nem sabia existir: o Eurovision Song Contest. Ele consiste em uma competição tradicional, com décadas de existência, em que cada país europeu envia um cantor (Israel também participa; não é só para a Fifa que o país não faz parte do Oriente Médio).

O público de casa escolhe os três melhores cantores, sem poder votar no próprio país. A apuração é feita com um número de pontos para cada um dos três primeiros colocados nas votações de cada país. É um critério que consegue algum grau de justiça, apesar de certamente existirem algumas distorções: acho difícil, por exemplo, os franceses votarem no Reino Unido (que, aliás, acabou em último lugar este ano). Além disso, Marion e Tobi disseram que há um monte de alemães que cruzam a fronteira com a Holanda para votar nos cantores alemães. São loucos esses germanos! De todo modo, não são sempre os mesmos países que vencem, o que significa que tais distorções não determinam o resultado.

Segundo Tobi e Marion contaram, esse concurso há tempos não fazia muito sucesso, era visto como algo antiquado. A Alemanha não era campeã desde 1982. Só que, desta vez, o país tinha enviado uma garotinha carismática de dezenove anos que era favoritíssima e, aí, todo mundo se encheu de orgulho patriótico. As pessoas no bar lotado aplaudiam, gritavam, e a Alemanha acabou, de fato, ganhando com rodadas de antecedência (a cada vez se divulgavam os votos de um país). Na saída, um motorista buzinava com passageiros tremulando a bandeira alemã! Tanto Tobi como, depois, Manfred (a primeira coisa que este me disse quando nos vimos no dia seguinte foi que a Alemanha venceu o concurso!) acham que, na verdade, os alemães não se importam tanto assim com esse resultado, e estavam apenas treinando para a Copa do Mundo.

Assim mesmo, as pessoas estavam empolgadíssimas no bar. Um quarteto cubano tinha sido contratado para tocar ao vivo, mas teve que esperar um tempão, porque a maioria não queria que a televisão ficasse no mudo; preferia ouvir as declarações da garota e, claro, uma palhinha da música campeã. Saímos e ainda fomos a outro bar, onde bebemos cerveja de trigo Paulaner. Já era madrugada, e eu ainda estava muito aceso, apesar de ter dormido por apenas sessenta minutos nas últimas 43 horas! Depois, pedi, àquela hora, um cafezinho, para agüentar o tranco e segurar o álcool. Mas em seguida chutaríamos o balde, pedindo um licor popular na cidade chamado Jägermeister.

Quando saímos de lá já eram umas duas e meia da matina. Até as quatro e meia já não haveria mais trem para eu voltar. Tobi ofereceu para eu dormir lá na casa deles. Eu disse que o problema é que, uma vez fechando o olho, não fazia a menor ideia de que horas acordaria. Meus amigos disseram que não havia problema e ainda me deram todo o conforto: emprestaram roupa para dormir, deram uma escova de dente, arrumaram a cama (na verdade, o sofá) e, no dia seguinte, ainda havia café-da-manhã para mim! Quer dizer, da tarde. Pois só fui acordar às duas e meia!

Chovia. Não tanto quanto da outra vez em que fui a Mainz, mas chovia. Tobi, que me acompanhou até a Hauptbanhof, disse que, normalmente, o tempo é melhor em Mogúncia do que em Frankfurt, e brincou que era eu que levava o tempo feio de Frankfurt para lá. De todo modo, certamente não seria aquela chuvinha que iria me atrapalhar, depois de encarar quase dois dias sem dormir, e ainda participar de um congresso acadêmico e viajar, tudo isso sem cair de sono. E já estou pronto para outra!


Fotos do encontro com Tobi e Marion em Mogúncia

Cenas da “Eschbórnia” pós-congresso nas fotos do terceiro mês em Frankfurt

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